A livre escolha pela cesárea é uma escolha livre?

JANE A. RUSSO Sobre o autor

Pesquisa realizada pela Fiocruz entre 2011 e 2012 investigou 23.894 mulheres com o objetivo de conhecer os determinantes, a magnitude e os efeitos das intervenções obstétricas no parto e estimar a prevalência de cesarianas em instituições do sistema de saúde brasileiro, chegando a resultados impressionantes. Naquele momento, 52% dos partos realizados no Brasil eram cesáreas. No setor privado, os números eram alarmantes: 88%. E 46% no setor público. Tais números transformaram nosso país em um campeão mundial na realização de cesáreas, na contramão do que vem sendo propugnado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) desde pelo menos 1985, e também nos mantendo distantes das práticas obstétricas de países com forte tradição em saúde pública de qualidade, como o Reino Unido e o Canadá (LEAL et al., 2014LEAL, M. C. et al. Sumário Executivo Temático da Pesquisa Nascer no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2014. Disponível em: <http://www.ensp.fiocruz.br/portal-ensp/informe/site/arquivos/anexos/nascerweb.pdf>. Acesso em: set. 2019.
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).

Em agosto deste ano, a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo aprovou o PL nº 435, de autoria da deputada Janaina Paschoal, cujo objetivo seria garantir à gestante a possibilidade de optar pelo parto cesáreo, a partir da trigésima nona semana de gestação, independentemente de haver indicação para o parto normal. Nas justificativas apresentadas, consta o seguinte argumento: “A autonomia individual confere à gestante o direito de, bem orientada pelo médico que a acompanha, escolher a via de parto de sua preferência, sendo certo que as intercorrências havidas no momento do parto serão levadas em consideração para, eventualmente, adotar-se um caminho diverso daquele, a princípio, almejado”. O projeto de lei, apesar de não ter obtido o aval de comissões técnicas, foi aprovado. Contra ele se insurgiram movimentos de mulheres e profissionais de saúde que lutam pela implantação do parto humanizado nas maternidades do país.

Trata-se, aparentemente, de uma lei que busca defender a autonomia da mulher e seu direito à livre escolha, no caso, da via de parto. Curiosamente, em seu post no Facebook, em defesa de seu projeto, a deputada cita o artigo “A decisão pela via de parto no Brasil: temas e tendências na produção da Saúde Coletiva”, de Liana Carvalho Riscado, Claudia Bonan Janotti e Regina Barbosa, que faz um estudo de revisão integrativa da literatura sobre a “decisão” relacionada à via de parto no campo da Saúde Coletiva. Ora, nada há no artigo de Riscado, Janotti e Barbosa (2016) que justifique uma defesa da opção pela cesárea, muito menos o argumento utilizado pela deputada de que a decisão (pela cesárea) é respeitada quando se trata de mulheres de classe média, o mesmo não acontecendo com mulheres de classes populares atendidas no Sistema Único de Saúde (SUS). Seria, portanto, um privilégio negado às mulheres de camadas populares. As autoras usam as categorias “decisão”, “escolha” e “preferência” entre aspas, justamente porque são as que devem ser problematizadas.

A escolha pela via de parto por parte de uma mulher não se dá no vazio. A mulher que engravida está imersa em um contexto social e cultural no qual o parto vaginal e a cesárea podem ser imaginados, relatados, retratados e experimentados de forma bastante diversa. Sabendo-se que a OMS considera recomendável a taxa de 10 a 15% de partos cesáreos, os números brasileiros são absurdos. E certamente não correspondem a uma “livre escolha” por parte de ampla maioria das gestantes, em especial as que parem no setor privado. Então, como entender nossas estatísticas, tão divergentes de países mais avançados do ponto de vista dos cuidados em saúde da mulher e com baixas taxas de morbi-mortalidade materna? O levantamento realizado por Riscado, Janotti e Barbosa (2016RISCADO, L. C.; JANNOTTI, C. B.; BARBOSA, R. H. S. Decisão pela via de parto no brasil: temas e tendências na produção da saúde coletiva. Texto Contexto Enferm, v. 25, n. 1, p. e3570014, 2016 (http://dx.doi.org/10.1590/0104-0707201600003570014).
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) aponta algumas reflexões que nos auxiliam a repensar a questão da escolha.

Boa parte das mulheres tanto no setor público quanto no privado iniciam a gestação desejando um parto vaginal, mas ao final da mesma acabam optando por ou aceitando a realização de uma cesárea. O que acontece no meio do caminho? O levantamento traz os resultados de pesquisas que mostram a preferência médica (e não da gestante) pela cesárea. Questões como “circular de cordão” ou tamanho do bebê, por exemplo, podem ser consideradas suficientes para a indicação da cirurgia. Além disso, parece faltar aos estudantes de medicina um treinamento adequado no manejo do parto vaginal, o que os levará a indicar uma cesárea por receio de complicações mais imaginadas que reais. A isso se somam, evidentemente, interesses econômicos dos planos de saúde, o conforto de um procedimento com hora marcada e a falta de estrutura de muitos serviços públicos para realizar adequadamente um parto vaginal.

Como falar em “direito à livre escolha da mulher” num contexto tão obviamente “cesarista”, em que a preferência médica pela cesárea não pode ser de modo algum subestimada? Como a mulher tem acesso a uma “livre escolha” se, no decorrer do seu pré-natal, as informações são prestadas por obstetras muitas vezes hostis ou temerosos com relação ao parto vaginal? Como falar em “decisão” ou “preferência” quando a mulher em trabalho de parto é muitas vezes humilhada, maltratada? Quando procedimentos invasivos e desnecessários são realizados por uma equipe médica sobrecarregada, que não tem tempo (e, às vezes, não tem vontade) de tratar de forma humana e acolhedora a mulher em um momento delicado de sua vida? Como não compreender que uma mulher sem recursos, sem informações, confrontada com tal situação não acabe por preferir uma cesárea? Que seja rápida, indolor e a livre de uma situação muitas vezes traumática?

O parto cesáreo, em que a criança é retirada do ventre da mãe através de uma cirurgia, deve, sem dúvida, ser considerado um avanço médico, que salvou e ainda salva muitas vidas de mulheres e bebês. Mas sua indicação é precisa, e trata-se de uma cirurgia que, como toda cirurgia, envolve riscos e deve ser evitada quando não necessária. São muitas as pesquisas científicas que demonstram a desvantagem da cesárea quando comparada ao parto normal - tanto para a saúde materna quanto para a do nascituro. Sua banalização não deve ser naturalizada, e a “escolha” das gestantes deve ser analisada como um dos produtos tanto dessa banalização, quanto do enaltecimento difuso de intervenções tecnológicas sobre o corpo a que assistimos hoje em dia. O valor propriamente econômico e mercantil de tais intervenções deve fazer parte da pauta de análise, auxiliando-nos a pensar os (des)caminhos trilhados pela obstetrícia no país.

Tenho certeza de que a deputada Janaina Paschoal também olhou com ternura e emoção a foto da duquesa de Windsor, Kate Middleton, sorridente e tranquila, ao lado do marido, em abril de 2018, na porta do hospital em que dera à luz ao príncipe real apenas seis horas antes, num parto normal assistido por uma parteira. Sim, imaginamos que caso Kate tivesse solicitado que seu parto fosse realizado através de uma cesárea, seu desejo seria atendido. Mas, para entendermos como se produzem “escolhas livres”, é preciso compreender que, no contexto em que vive a duquesa, partos são feitos por parteiras e bebês nascem naturalmente através de um parto vaginal. Não são eventos médicos, não são vistos como uma intervenção médica. Então a “livre escolha” por uma cesárea nem está colocada no horizonte. Ela não é proibida, mas simplesmente não ocorre. Ou ocorre de forma marginal (longe dos 88% brasileiros) - porque não faz parte do imaginário social. Simples assim. A mulher não é ensinada, ou mesmo doutrinada, a temer o parto normal, e por isso a cesárea não está colocada como solução para um problema, porque o problema não foi criado...

A deputada paulista certamente estaria trabalhando em favor dos direitos das mulheres se usasse seu mandato não para propugnar pelo “direito a escolher uma cesárea”, mas para garantir o direito da gestante de ser acolhida com respeito e assistência cuidadosa no seu momento de parir. Pelo seu direito a ter um(a) acompanhante ao seu lado que lhe dê tranquilidade e apoio. A ser muito bem informada sobre o que ocorre durante um parto. A ser informada sobre as reais vantagens e desvantagens de uma cesárea.

Somente após normalizarmos o parto normal - uma ação que requer muito trabalho junto a hospitais, médicos, associações médicas, parlamentares, mídia e outros atores de relevo - será possível falar em “escolha da via de parto”. Até lá, cabe a todos nós, profissionais da Saúde Coletiva, evitar que escolhas aparentemente livres sejam realizadas com uma venda nos olhos.

Referências bibliográficas

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Nov 2019
  • Data do Fascículo
    2019
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