‘Irmandade travesti é a nossa cura’: solidariedade política entre travestis e mulheres trans no acesso ao cuidado em saúde e à prevenção ao HIV

‘Travesti sisterhood is our cure’: sisterhood among travestis e and transgender women in accessing health care and HIV prevention

Aureliano Lopes da Silva Junior Mauro Brigeiro Simone Monteiro Sobre os autores

RESUMO

Diversos estudos descrevem as condições de vulnerabilidade social das pessoas trans e suas experiências de discriminação nos serviços de saúde. Tais situações dificultam o acesso dessa população à promoção e ao cuidado em saúde e, no caso particular da Aids, resultam na baixa adesão à prevenção e ao tratamento. Este artigo discute as estratégias para o acesso aos serviços públicos de saúde e à prevenção ao HIV desenvolvidas por travestis e mulheres trans da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. A reflexão baseou-se em dois estudos: um sobre testagem de HIV e outro sobre o uso das tecnologias biomédicas de prevenção (PrEP, PEP). Os achados, decorrentes da observação participante e de entrevistas, demonstram que a produção do cuidado em saúde desse grupo se constrói alicerçada em uma certa solidariedade política, aqui denominado de irmandade, que medeia a relação de travestis e mulheres trans com o território, os dispositivos de saúde e a experiência com o HIV/Aids. Tais dados sugerem a importância de as políticas de saúde considerarem as condições de vulnerabilidade das pessoas trans, as demandas concernentes à: autonomia e autodeterminação na produção de saúde; legitimação de suas formas de subjetivação e cuidado de si; especificidade da relação entre pares.

PALAVRAS-CHAVE
Prevenção de doenças; HIV; Síndrome de Imunodeficiência Adquirida; Pessoas transgênero; Travestilidade

ABSTRACT

Several studies describe the conditions of social vulnerability of transgender people and their experiences of discrimination in health services. Such situations make it difficult for this population to access health promotion and care and, in the particular case of AIDS, result in low adherence to prevention and treatment. This article discusses the strategies for accessing public health services and HIV prevention developed by travestis and transgender women in the Metropolitan Region of Rio de Janeiro. The reflection is based on two studies, one on HIV testing and the other on the use of biomedical prevention technologies (PrEP, PEP). The findings, resulting from participant observation and interviews, indicate that the production of health care for this group is built from a certain political solidarity, here called sisterhood, which mediates the relationship of travestis and transgender women with the territory, the devices of health, and the experience with HIV/AIDS. Such data suggest the importance of health policies considering the conditions of vulnerability of trans people, the demands concerning: autonomy and self-determination in the production of health; legitimation of their forms of subjectivation and self-care; specificity of the relationship between peers.

KEYWORDS
Disease prevention; HIV; Acquired Immunodeficiency Syndrome; Transgender persons; Travesti

Introdução

A produção acadêmica tem descrito os impactos negativos da discriminação sofrida por pessoas trans nos serviços de saúde, como o desrespeito ao nome social e o não reconhecimento da autoidentificação de gênero11 Rocon PC, Rodrigues A, Zamboni J, et al. Dificuldades vividas por pessoas trans no acesso ao Sistema Único de Saúde. Ciênc. Saúde Colet. 2016 [acesso em 2022 jan 25]; 21(8):2517-2526. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/zGJyVqQ6WGjygRzLqfd8vRD/?lang=pt.
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. Tais situações dificultam o acesso dessa população à promoção e ao cuidado integral em saúde. No caso da Aids, os efeitos da discriminação e das violências de cunho transfóbico no âmbito dos serviços de saúde incluem a baixa adesão das travestis e das mulheres transexuais aos métodos de prevenção e ao tratamento do HIV22 De Carvalho Pereira LB, Chazan ACS. O Acesso das Pessoas Transexuais e Travestis à Atenção Primária à Saúde: uma revisão integrativa. Rev Bras Med Fam Comunidade. 2019 [acesso em 2022 fev 15]; 14(41):1795. Disponível em: https://rbmfc.org.br/rbmfc/article/view/1795/985.
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,33 Leite BO, Medeiros DS, Magno L, et al. Association between gender-based discrimination and medical visits and HIV testing in a large sample of transgender women in northeast Brazil. Int J Equity Health. 2021 [acesso em 2022 jan 24]; 20(1):199. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC8422640/.
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. Essa problemática tem sido identificada em diferentes países. Estudo realizado no México, no Brasil e no Peru aponta, por exemplo, que pobreza, racismo, violência e discriminação nas unidades de saúde, como falta de acolhimento e atendimento humanitário, dificultam o acesso e a adesão de travestis e de mulheres trans à Profilaxia Pré-Exposição (PrEP) ao HIV44 Pimenta MC, Bermúdez XP, Godoi AMM, et al. Barreiras e facilitadores do acesso de populações vulneráveis à PrEP no Brasil: Estudo ImPrEP Stakeholders. Cad. Saúde Pública. 2022 [acesso em 2022 jan 18]; 38(1):e00290620. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/pzRvbkKhGRFjh4PHmkk4qqx/.
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A transgeneridade se refere às experiências em que a identidade de gênero não coincide com aquela assignada ao nascimento, incluindo as travestis, os homens e as mulheres trans e as pessoas não binárias. Nesse sentido, o estigma atravessa tais experiências. Ao analisar as relações entre discriminação e estigma da transgeneridade e vulnerabilização de travestis e de mulheres trans ao HIV/Aids, Magno et al.55 Magno L, Silva LAV, Veras MA, et al. Estigma e discriminação relacionados à identidade de gênero e à vulnerabilidade ao HIV/aids entre mulheres transgênero: revisão sistemática. Cad. Saúde Pública. 2019 [acesso em 2022 jan 24]; 35(4):e00112718. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/8rxk9ZKGG9GWhCTXW7QBsKh/?lang=pt.
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identificaram que as violências estruturais, interpessoais e individuais produzem maior vulnerabilidade ao HIV. Os estigmas relacionados com a transgeneridade e/ou com o trabalho sexual fomentam o receio da discriminação e afastam essa população dos serviços de saúde e da prevenção e cuidado.

A articulação das diferentes condições de vulnerabilidade, decorrentes dos processos de estigmatização associados à transgeneridade, produz um círculo de violência e violações e, consequentemente, um processo de subjetivação marcado pela desumanização66 De Jesus JG. Operadores do direito no atendimento às pessoas trans. Rev. Direito e Práxis. 2016 [acesso em 2022 fev 15]; 7(3):537-556. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/25377/18211.
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. Isso significa que, além da discriminação no contexto dos serviços de saúde, a população trans experiencia estigmatização nas relações interpessoais, traduzidas pela exclusão de círculos familiares, bem como por agressões de amigos, parceiros, policiais, vizinhos, entre outros. Esses processos produzem marginalização social e podem comprometer a saúde mental na medida em que provocam baixa autoestima, isolamento social, depressão, uso abusivo de substâncias e ideação suicida; reduzindo a capacidade de negociação de métodos preventivos com clientes e parceiros sexuais55 Magno L, Silva LAV, Veras MA, et al. Estigma e discriminação relacionados à identidade de gênero e à vulnerabilidade ao HIV/aids entre mulheres transgênero: revisão sistemática. Cad. Saúde Pública. 2019 [acesso em 2022 jan 24]; 35(4):e00112718. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/8rxk9ZKGG9GWhCTXW7QBsKh/?lang=pt.
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. Além dos dramáticos indicadores relacionados com exclusão, discriminação, violência e transtornos mentais, a prevalência de HIV/Aids na população trans é muito superior às demais populações77 Grinsztejn B, Jalil EM, Monteiro L, et al. Unveiling of HIV dynamics among transgender women: a respondent-driven sampling study in Rio de Janeiro, Brazil. Lancet HIV. 2017 [acesso em 2022 jan 24]; (4):e169--e176. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC5411266/.
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,88 Costa AB, Fontanari AM, Jacinto MM, et al. Population-based HIV prevalence and associated factors in male-to-female transsexuals from Southern Brazil. Arch Sex Behav. 2015 [acesso em 2022 jan 24]; 44(2):521-524. Disponível em: https://link.springer.com/article/10.1007/s10508-014-0386-z.
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Se, por um lado, as análises sobre as condições de saúde das pessoas trans devem atentar para a influência da discriminação e da exclusão social, por outro, é necessário considerar as possibilidades de resistência a esses processos. Convém lembrar que, historicamente, a entrada oficial da pauta sobre pessoas transgênero no Sistema Único de Saúde (SUS) ocorreu a partir do financiamento do então Programa Nacional de DST-Aids para o Encontro Nacional de Travestis na Luta contra a Aids (Entlaids). Ao longo das respostas à epidemia, foram estabelecidas relações entre o movimento social de travestis e transexuais e o governo federal. Tais relações resultaram na maior visibilidade de suas demandas e conquistas no campo da política e dos direitos da população LGBTQIA+, traduzidas pelo financiamento de cursos de capacitação política, de campanhas sobre o respeito às pessoas trans, com participação do movimento social, entre outras99 Carvalho MFL. Que mulher é essa? Identidade, política e saúde no movimento de travestis e transexuais. [dissertação]. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 2011.. Monteiro e Brigeiro1010 Monteiro S, Brigeiro M. Experiências de acesso de mulheres trans/travestis aos serviços de saúde: avanços, limites e tensões. Cad. Saúde Pública. 2019 [acesso em 2022 jan 25]; (35):e00111318. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/7Smzr3QL4tfvwZvqyKtysgt/?lang=pt.
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salientam os progressos, no âmbito legal, das políticas e das normas sociais nas últimas décadas, incluindo a oferta no SUS dos processos de transição/afirmação de gênero e de serviços de saúde de modo mais amplo, decorrentes de lutas políticas. Segundo os autores, a despeito das dificuldades na implementação dessas conquistas no âmbito programático, é preciso considerar seus impactos positivos no acesso ao cuidado em saúde dessa população e no enfrentamento das condições de vulnerabilidade.

Pelúcio1111 Pelúcio LM. Abjeção e Desejo: uma etnografia travesti sobre o modelo preventivo de Aids. São Paulo: Annablume/Fapesp; 2009. argumenta que as pautas e os modos de ação política no campo da saúde, produzidas pela articulação entre o poder público e o movimento social de travestis, são fundamentados na produção de bioidentidades, que encarnam a responsabilização individual pelo cuidado em saúde e prevenção do HIV. Esse processo, nominado por ela de ‘SIDAdanização’, revela ganhos no acesso aos meios de prevenção e cuidado. Todavia, apresenta limites para enfrentar as condições de vulnerabilidade ao HIV entre as travestis e as mulheres trans, pois não é suficiente ‘empoderar’ sujeitos sem modificar efetivamente as estruturas sociais que produzem e mantêm os processos de vulnerabilização ao HIV. Ou seja, as diversas discriminações e exclusões, especialmente no cuidado integral em saúde, produz sujeitos mais vulneráveis ao HIV.

Visando avançar nessa discussão, este artigo discute as estratégias adotadas por travestis e mulheres trans para o acesso aos serviços de saúde e à prevenção ao HIV da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Considera-se que as condições de vulnerabilidade articuladas ao estigma e discriminação associados à transgeneridade são processos sociais centrais para compreender as dificuldades de acesso dessa população aos cuidados em saúde. Entretanto, buscou-se um olhar complementar que valoriza outra faceta desses processos: a da agência das travestis e das mulheres trans para lidar com as barreiras de acesso, bem como suas formas de resistência ao poder dos sistemas oficiais de saúde1010 Monteiro S, Brigeiro M. Experiências de acesso de mulheres trans/travestis aos serviços de saúde: avanços, limites e tensões. Cad. Saúde Pública. 2019 [acesso em 2022 jan 25]; (35):e00111318. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/7Smzr3QL4tfvwZvqyKtysgt/?lang=pt.
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,1212 Logie CH, Perez-Brumerc A, Jenkinsond J, et al. Marginalization and social change processes among lesbian, gay, bisexual and transgender persons in Swaziland: Implications for HIV prevention. AIDS Care. 2018 [acesso em 2022 jan 24]; 30(supl2):33-40. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/09540121.2018.1468011.
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. Assim, partiu-se do entendimento que a agência de travestis e de mulheres trans configura-se a partir de uma experiência de irmandade.

Tal noção seria equivalente à de sisterhood, traduzida como sororidade, que se refere a uma espécie de solidariedade política entre mulheres. Embora seja cara a determinadas correntes do feminismo, a ideia de sisterhood tem suscitado diferentes debates, com destaque a questionamentos sobre sua submissão aos mesmos sistemas de opressão patriarcal e sexista. Uma das críticas advém do feminismo negro. Segundo bell hooks1313 Hooks b. Teoria feminista: da margem ao centro. São Paulo: Editora Perspectiva; 2019., essa categoria oculta a diversidade existente entre as mulheres no tocante a marcadores sociais da diferença (raça/etnia, classe social, geração). Desse modo, defende o não apagamento das diferenças, preservando a construção de uma solidariedade política contra os variados sistemas de opressão, em um projeto que conjugasse a valorização da diversidade.

A solidariedade política, necessária à luta contra os mais diversos sistemas de opressão, encontra eco nas proposições transfeministas de luta contra “a opressão sobre quaisquer pessoas cujos corpos não estão conformados à norma binária homem/pênis e mulher/vagina”1414 De Jesus JG. Género sem essencialismo: feminismo transgénero como crítica do sexo. Universitas Humanística. 2014 [acesso em 2022 fev 15]; (78):241-257. Disponível em: http://www.scielo.org.co/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0120-48072014000200011.
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. Nessa direção, reivindicam a diversidade de corpos, modos de subjetivação e/ou formas de ação política e enfatizam a perspectiva da interseccionalidade1515 Azevedo, PC. “As travas de Jardim são unidas”: etnografia da performance identitária das travestis em contextos rurais e interioranos do sertão potiguar. [dissertação]. Natal: Universidade Federal do Rio Grande do Norte; 2020. na análise crítica das discriminações e violências contra pessoas trans. Segundo a transfeminista negra Fernanda da Silva1616 Silva FM. Dororidade: dor que só as mulheres transexuais e travestis negras sentem. Revista Docência e Cibercultura. Cad. Notícias. 2022 jan. [acesso em 2022 fev 15]. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/re-doc/announcement/view/1413.
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, a solidariedade política de travestis e de mulheres trans negras – expressa pelo neologismo dororidade – seria constituída a partir da discriminação e da violência de cunhos transfóbicos e racistas decorrentes de lógica estrutural “cishegemônica (sic) heterossexista patriarcal”1616 Silva FM. Dororidade: dor que só as mulheres transexuais e travestis negras sentem. Revista Docência e Cibercultura. Cad. Notícias. 2022 jan. [acesso em 2022 fev 15]. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/re-doc/announcement/view/1413.
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que embasa as sociedades ocidentais. De modo geral, há uma discriminação direcionada contra as transgeneridades, constituindo-as como um estigma diante da norma e de corpos cisgênero.

A cisgeneridade é definida por Vergueiro1717 Vergueiro V. Pensando a cisgeneridade como crítica decolonial. In: Messeder S, Castro MG, Moutinho L, organizadores. Enlaçando sexualidades: uma tessitura interdisciplinar no reino das sexualidades e das relações de gênero. Salvador: EDUFBA; 2016. p. 249-270. como uma

normatividade que organiza moralidades, famílias e também perspectivas assistencialistas, de tutela e sujeição sobre estas diversidades [corporais e de identidades de gênero]1717 Vergueiro V. Pensando a cisgeneridade como crítica decolonial. In: Messeder S, Castro MG, Moutinho L, organizadores. Enlaçando sexualidades: uma tessitura interdisciplinar no reino das sexualidades e das relações de gênero. Salvador: EDUFBA; 2016. p. 249-270.(251).

Ou seja, produz um modo de subjetivação normativo que, de alguma forma, constitui a transgeneridade como alteridade1818 Favero SR. (Des)epistemologizar a clínica: o reconhecimento de uma ciência guiada pelo pensamento cisgênero. Revista Brasileira de Pesquisa (Auto) biográfica. 2020 [acesso em 2022 fev 15]; 5(13):403-418. Disponível em: https://www.revistas.uneb.br/index.php/rbpab/article/view/7272/pdf.
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. Desse modo, julgou-se pertinente investir na ideia de irmandade como forma de solidariedade política entre sujeitos identificados ou autoidentificados como trans.

A partir daqui, será abordada a solidariedade política no universo estudado por meio da categoria “irmandade travesti”, reiterada por Nascimento1919 Nascimento LC. Eu não vou morrer: solidão, autocuidado e resistência de uma travesti negra e gorda para além da pandemia. Rev Inter-Legere 2020 [acesso em 2022 fev 15]; (3):28:c21581. Disponível em: https://periodicos.ufrn.br/interlegere/article/view/21581/13152.
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, que parece melhor dizer da agência ético-estético-política de travestis e de mulheres trans na sua relação com o setor saúde no Brasil:

Durante toda minha vida, eu me senti sozinha quando não estava entre as minhas e os meus, entre travestis e transexuais, momentos em que mais me sinto humana, acolhida, abrigada e protegida. [...] a irmandade travesti, que é o nosso modo de exercer o que bell hooks (2019) e o feminismo de modo geral compreendem como sororidade – a construção de solidariedade política. Não por acaso, Sophia Rivera (2020b) afirma que a irmandade travesti é a nossa cura!1919 Nascimento LC. Eu não vou morrer: solidão, autocuidado e resistência de uma travesti negra e gorda para além da pandemia. Rev Inter-Legere 2020 [acesso em 2022 fev 15]; (3):28:c21581. Disponível em: https://periodicos.ufrn.br/interlegere/article/view/21581/13152.
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(10,11,12).

Material e métodos

As reflexões desenvolvidas neste artigo derivam de duas pesquisas orientadas pela perspectiva socioantropológica, feitas no contexto pré-pandemia da Covid-19 e coordenadas pela terceira autora. Ambas envolveram trabalho de campo e reuniram 22 entrevistas com mulheres autodeclaradas trans e travestis da Região Metropolitana do Rio de Janeiro.

Entre as participantes dos estudos, 13 foram entrevistadas pelo primeiro e o segundo autor no âmbito do projeto (NN 2019-2020), doravante denominado projeto PrEP/PEP. As outras nove foram entrevistadas por uma pesquisadora do projeto (NN 2015-2018), daqui em diante chamado de projeto Testagem, sob supervisão do segundo e da terceira autora. Os projetos contaram com aprovação dos Comitês de Ética em Pesquisa das instituições envolvidas, CAAE: 16076619.2.0000.5248 e CAAE: 45267315.9.0000.5248 respectivamente.

As duas pesquisas compartilhavam da preocupação em entender as mudanças sociais derivadas da virada biomédica nas respostas à epidemia de Aids na última década, com o apagamento das fronteiras entre o que é da ordem da prevenção e do tratamento e a predominância dos princípios, recursos e espaços clínicos na concepção e prática preventiva. O projeto Testagem buscou refletir sobre as implicações sociais da estratégia de controle da epidemia por meio da testagem massiva de HIV em populações vulneráveis (geralmente aquelas sexualmente marginalizadas), conforme as políticas globais do Testar e Tratar. O projeto PrEP/PEP analisou à implementação da PrEP e da Profilaxia Pós-Exposição (PEP) no Brasil, os significados que lhes foram atribuídos por diferentes atores sociais e sua relação com a sexualidade. Em tais estudos, buscou-se conhecer os efeitos da biomedicalização da prevenção tanto na organização dos serviços de atenção básica e especializados, como nos modos de subjetivação de pessoas pertencentes aos segmentos priorizados por tais políticas.

As entrevistas abordaram o perfil social, a trajetória de vida e as experiências com os serviços de saúde, sendo realizadas presencial e individualmente e gravadas em áudio, mediante autorização e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Além desse material empírico, foram realizadas observações em serviços públicos de saúde especializados, no caso do projeto PrEP/PEP, e de contextos de trabalho sexual e espaços de sociabilidade, no caso do projeto Testagem. Os nomes adotados no texto são fictícios, e os perfis foram descritos nos quadros 1 e 2.

Quadro 1
Perfil das entrevistadas do projeto: NN – 2019-2021
Quadro 2
Perfil das entrevistadas do projeto: NN – 2015-2018

Das 13 entrevistadas do projeto PrEP/PEP, três foram contatadas nos serviços de PrEP na Região Metropolitana do Rio de Janeiro; cinco, pelas redes pessoais dos entrevistadores; e cinco, em uma ocupação LGBTQIA+ num bairro carioca. Todas residiam na cidade do Rio de Janeiro. As cinco moradoras da ocupação tinham de 18 a 26 anos, e três se autoidentificavam como negras/pretas. Além da baixa escolaridade, esse grupo se caracterizava pela falta de renda e condições materiais precárias. Duas delas viviam com HIV.

As outras sete entrevistadas tinham de 24 a 36 anos; três se autodeclararam como brancas, três como negras/pretas e uma como parda/cabocla; quatro completaram o curso superior completo e uma não chegou a finalizar. Todas viviam em casas ou apartamentos alugados. Cinco informaram renda mensal entre R$ 4 e 10 mil: três eram trabalhadoras sexuais; uma era funcionária do Poder Legislativo e uma trabalhava em espetáculos e estabelecimentos de beleza. Duas recebiam bolsas de R$ 1.000 a 1.500 como estudantes universitárias.

As nove entrevistadas do projeto Testagem foram contatadas por intermédio do Centro de Cidadania LGBTI da Baixada Fluminense e abarcavam a faixa entre 23 e 45 anos. Quatro se autodeclararam como negras, duas como brancas, uma como indígena e duas não relataram. Sete viviam em municípios da Baixada Fluminense e duas, na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro. Quatro cursaram o Ensino Médio completo; uma, o Ensino Superior e quatro tinham Ensino Fundamental ou Médio incompletos. Seis relataram passagens pela prostituição. Em geral, o trabalho sexual era exercido de forma concomitante à função de auxiliar em instituições e/ou serviços diversos. Três delas, na faixa de 38-45 anos, relataram experiências no mercado sexual europeu. A renda de seis entrevistadas girava em torno do salário mínimo à época (entre R$ 900 e R$ 1.300), as demais relataram renda entre R$ 2 e R$ 4 mil. Quatro tinham trânsito em instituições governamentais e/ou organizações sociais voltadas para questões LGBTQIA+. Três viviam com o HIV.

Após a transcrição das 20 entrevistas, foi realizada uma leitura exaustiva do material, visando à categorização e à interpretação dos depoimentos, orientadas pelo método de análise de conteúdo2020 Bardin L. Análise de conteúdo. Portugal: Edições 70; 2011.. Tal processo envolveu a sistematização do material em blocos temáticos, seguida da análise das relações entre as unidades identificadas. Foram definidas as seguintes categorias analíticas: 1) situações de discriminação ou receio da estigmatização no âmbito dos serviços de saúde; 2) vulnerabilidades e exclusão social; e 3) estratégias de resposta às discriminações no cuidado em saúde. A análise dos achados buscou entender como a irmandade entre as travestis e as mulheres trans se manifestava tanto na relação delas com os serviços de prevenção e testagem anti-HIV quanto nos cuidados gerais com a própria saúde.

Resultados e discussão

Discriminação e estigmatização nas trajetórias de vida

Ao analisar as entrevistas com as travestis e as mulheres trans, os depoimentos de profissionais e gestores e as observações de campo, constatou-se um rico detalhamento das condições de vida material, sociabilidade e de seus cuidados de saúde e relações com os serviços de saúde. Os dados indicaram particularidades nas trajetórias das entrevistadas e, ao mesmo tempo, experiências comuns diante das discriminações sofridas. O modo como elas manejavam situações adversas sugeriam a importância do apoio social obtido na relação com outras travestis e mulheres trans, assim como associações entre os cuidados de saúde e os vínculos entre pares ou de solidariedade.

As situações de discriminação e estigmatização constituem os aspectos mais comuns nos relatos das travestis e das mulheres trans nas duas pesquisas aqui analisadas. O modo como a condição de transgeneridade afeta sua presença no meio social as exclui de bens e serviços sociais fundamentais, como saúde, educação, entre outros. A marginalização e a exclusão social descritas por elas fomentam frequentemente a atuação no mercado sexual como fonte de renda, ao menos em algum momento de suas vidas. Das 22, 7 trabalhavam no mercado sexual e 7 já haviam trabalhado nele, o que corrobora o lugar do trabalho sexual como ocupação e/ou meio de subsistência para diversas travestis e mulheres trans1111 Pelúcio LM. Abjeção e Desejo: uma etnografia travesti sobre o modelo preventivo de Aids. São Paulo: Annablume/Fapesp; 2009.,1515 Azevedo, PC. “As travas de Jardim são unidas”: etnografia da performance identitária das travestis em contextos rurais e interioranos do sertão potiguar. [dissertação]. Natal: Universidade Federal do Rio Grande do Norte; 2020.,2121 Kulick D. Travesti: prostituição, sexo, gênero e cultura no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2008.,2222 Benedetti M. Toda feita: o corpo e o gênero das travestis. Rio de Janeiro: Garamond; 2005.,2323 Vartabedian J. Brazilian ‘Travesti’ Migrations: Gender, Sexualities and Embodiment Experiences. Londres: Palgrave Macmillan; 2018.,2424 Ochoa M. Queen for a Day: Transformistas, Beauty Queens, and the Performance of Femininity in Venezuela. Durham: Duke University Press; 2014.,2525 Romano VF. As travestis no programa saúde da família da Lapa. Saúde e sociedade. 2008 [acesso em 2022 fev 4]; 17(2):211-219. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sausoc/a/crBYFm6crQJXXPzmtX4gZ5K/?lang=pt.
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. Embora tais situações confiram uma unidade ao universo social estudado, notou-se como a geração, as oportunidades de escolarização e a renda dão contornos particularidades na maneira de lidar com elas, oferecendo maiores possibilidades de acesso aos serviços de saúde àquelas mais escolarizadas e inseridas em redes de solidariedade2626 De Garay JH, Silva Junior AL, Carrara S, et al. Saúde de travestis e pessoas trans no Rio de Janeiro e Região Metropolitana: estratégias e condições de acesso. Sexualidad, Salud y Sociedad. 2022 [acesso em 2022 fev 22]; (38):e22301. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sess/a/JYPZ67FjdPvLyCVYXCCcjfg/.
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. Nesse sentido, suas histórias indicam os graus variados de como as mudanças nas normas e políticas sociais brasileiras, nas últimas duas décadas, vêm se refletindo, por exemplo, no acesso ao ensino superior e na consciência das pautas de direitos sustentadas pelo movimento social organizado.

No que diz respeito às experiências no sistema público de saúde, os depoimentos convergem com achados de outros estudos relacionados com: recorrência de desrespeito ao nome social; constrangimentos baseados na identidade de gênero; falta de informação sobre serviços e procedimentos; burocracias do serviço público de saúde; dificuldades financeiras para transporte e alimentação, visando ao acesso ao serviço; horário de funcionamento inadequado para aquelas que atuavam no trabalho sexual à noite11 Rocon PC, Rodrigues A, Zamboni J, et al. Dificuldades vividas por pessoas trans no acesso ao Sistema Único de Saúde. Ciênc. Saúde Colet. 2016 [acesso em 2022 jan 25]; 21(8):2517-2526. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/zGJyVqQ6WGjygRzLqfd8vRD/?lang=pt.
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,22 De Carvalho Pereira LB, Chazan ACS. O Acesso das Pessoas Transexuais e Travestis à Atenção Primária à Saúde: uma revisão integrativa. Rev Bras Med Fam Comunidade. 2019 [acesso em 2022 fev 15]; 14(41):1795. Disponível em: https://rbmfc.org.br/rbmfc/article/view/1795/985.
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,33 Leite BO, Medeiros DS, Magno L, et al. Association between gender-based discrimination and medical visits and HIV testing in a large sample of transgender women in northeast Brazil. Int J Equity Health. 2021 [acesso em 2022 jan 24]; 20(1):199. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC8422640/.
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,44 Pimenta MC, Bermúdez XP, Godoi AMM, et al. Barreiras e facilitadores do acesso de populações vulneráveis à PrEP no Brasil: Estudo ImPrEP Stakeholders. Cad. Saúde Pública. 2022 [acesso em 2022 jan 18]; 38(1):e00290620. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/pzRvbkKhGRFjh4PHmkk4qqx/.
https://www.scielo.br/j/csp/a/pzRvbkKhGR...
,55 Magno L, Silva LAV, Veras MA, et al. Estigma e discriminação relacionados à identidade de gênero e à vulnerabilidade ao HIV/aids entre mulheres transgênero: revisão sistemática. Cad. Saúde Pública. 2019 [acesso em 2022 jan 24]; 35(4):e00112718. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/8rxk9ZKGG9GWhCTXW7QBsKh/?lang=pt.
https://www.scielo.br/j/csp/a/8rxk9ZKGG9...
,1010 Monteiro S, Brigeiro M. Experiências de acesso de mulheres trans/travestis aos serviços de saúde: avanços, limites e tensões. Cad. Saúde Pública. 2019 [acesso em 2022 jan 25]; (35):e00111318. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/7Smzr3QL4tfvwZvqyKtysgt/?lang=pt.
https://www.scielo.br/j/csp/a/7Smzr3QL4t...
,2626 De Garay JH, Silva Junior AL, Carrara S, et al. Saúde de travestis e pessoas trans no Rio de Janeiro e Região Metropolitana: estratégias e condições de acesso. Sexualidad, Salud y Sociedad. 2022 [acesso em 2022 fev 22]; (38):e22301. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sess/a/JYPZ67FjdPvLyCVYXCCcjfg/.
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.

Diante desse quadro de obstáculos e restrições, as entrevistadas descrevem práticas de resistência para aceder aos serviços e organizar seus cuidados de saúde. Compreende-se que tais práticas não são somente ações individuais, e sim a expressão de uma agência que se define coletivamente. Em outros estudos com mulheres trans sobre experiências de discriminação no sistema de saúde11 Rocon PC, Rodrigues A, Zamboni J, et al. Dificuldades vividas por pessoas trans no acesso ao Sistema Único de Saúde. Ciênc. Saúde Colet. 2016 [acesso em 2022 jan 25]; 21(8):2517-2526. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/zGJyVqQ6WGjygRzLqfd8vRD/?lang=pt.
https://www.scielo.br/j/csc/a/zGJyVqQ6WG...
,22 De Carvalho Pereira LB, Chazan ACS. O Acesso das Pessoas Transexuais e Travestis à Atenção Primária à Saúde: uma revisão integrativa. Rev Bras Med Fam Comunidade. 2019 [acesso em 2022 fev 15]; 14(41):1795. Disponível em: https://rbmfc.org.br/rbmfc/article/view/1795/985.
https://rbmfc.org.br/rbmfc/article/view/...
,33 Leite BO, Medeiros DS, Magno L, et al. Association between gender-based discrimination and medical visits and HIV testing in a large sample of transgender women in northeast Brazil. Int J Equity Health. 2021 [acesso em 2022 jan 24]; 20(1):199. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC8422640/.
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/article...
,44 Pimenta MC, Bermúdez XP, Godoi AMM, et al. Barreiras e facilitadores do acesso de populações vulneráveis à PrEP no Brasil: Estudo ImPrEP Stakeholders. Cad. Saúde Pública. 2022 [acesso em 2022 jan 18]; 38(1):e00290620. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/pzRvbkKhGRFjh4PHmkk4qqx/.
https://www.scielo.br/j/csp/a/pzRvbkKhGR...
,55 Magno L, Silva LAV, Veras MA, et al. Estigma e discriminação relacionados à identidade de gênero e à vulnerabilidade ao HIV/aids entre mulheres transgênero: revisão sistemática. Cad. Saúde Pública. 2019 [acesso em 2022 jan 24]; 35(4):e00112718. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/8rxk9ZKGG9GWhCTXW7QBsKh/?lang=pt.
https://www.scielo.br/j/csp/a/8rxk9ZKGG9...
,1010 Monteiro S, Brigeiro M. Experiências de acesso de mulheres trans/travestis aos serviços de saúde: avanços, limites e tensões. Cad. Saúde Pública. 2019 [acesso em 2022 jan 25]; (35):e00111318. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/7Smzr3QL4tfvwZvqyKtysgt/?lang=pt.
https://www.scielo.br/j/csp/a/7Smzr3QL4t...
,2626 De Garay JH, Silva Junior AL, Carrara S, et al. Saúde de travestis e pessoas trans no Rio de Janeiro e Região Metropolitana: estratégias e condições de acesso. Sexualidad, Salud y Sociedad. 2022 [acesso em 2022 fev 22]; (38):e22301. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sess/a/JYPZ67FjdPvLyCVYXCCcjfg/.
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, essas práticas de resistência baseadas na solidariedade são, por vezes, referidas, mas não exploradas a partir da noção de ‘irmandade travesti’.

Dito de outro modo, perante trajetórias marcadas por situações adversas, de marginalização e exclusão social, os depoimentos sugerem que a produção do cuidado em saúde se constrói a partir de uma solidariedade política ou irmandade, que medeia a relação com os dispositivos de saúde, assim como sua experiência com o HIV/Aids. A opção de adotar a noção de ‘irmandade travesti’ para descrever o modo como elas enfrentam o estigma, associado à transgeneridade no âmbito do cuidado em saúde, decorre das reflexões advindas da literatura feminista1313 Hooks b. Teoria feminista: da margem ao centro. São Paulo: Editora Perspectiva; 2019.,1414 De Jesus JG. Género sem essencialismo: feminismo transgénero como crítica do sexo. Universitas Humanística. 2014 [acesso em 2022 fev 15]; (78):241-257. Disponível em: http://www.scielo.org.co/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0120-48072014000200011.
http://www.scielo.org.co/scielo.php?scri...
,1616 Silva FM. Dororidade: dor que só as mulheres transexuais e travestis negras sentem. Revista Docência e Cibercultura. Cad. Notícias. 2022 jan. [acesso em 2022 fev 15]. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/re-doc/announcement/view/1413.
https://www.e-publicacoes.uerj.br/index....
,1919 Nascimento LC. Eu não vou morrer: solidão, autocuidado e resistência de uma travesti negra e gorda para além da pandemia. Rev Inter-Legere 2020 [acesso em 2022 fev 15]; (3):28:c21581. Disponível em: https://periodicos.ufrn.br/interlegere/article/view/21581/13152.
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e de etnografias1111 Pelúcio LM. Abjeção e Desejo: uma etnografia travesti sobre o modelo preventivo de Aids. São Paulo: Annablume/Fapesp; 2009.,1515 Azevedo, PC. “As travas de Jardim são unidas”: etnografia da performance identitária das travestis em contextos rurais e interioranos do sertão potiguar. [dissertação]. Natal: Universidade Federal do Rio Grande do Norte; 2020.,2121 Kulick D. Travesti: prostituição, sexo, gênero e cultura no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2008.,2222 Benedetti M. Toda feita: o corpo e o gênero das travestis. Rio de Janeiro: Garamond; 2005.,2323 Vartabedian J. Brazilian ‘Travesti’ Migrations: Gender, Sexualities and Embodiment Experiences. Londres: Palgrave Macmillan; 2018.,2424 Ochoa M. Queen for a Day: Transformistas, Beauty Queens, and the Performance of Femininity in Venezuela. Durham: Duke University Press; 2014.,2525 Romano VF. As travestis no programa saúde da família da Lapa. Saúde e sociedade. 2008 [acesso em 2022 fev 4]; 17(2):211-219. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sausoc/a/crBYFm6crQJXXPzmtX4gZ5K/?lang=pt.
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sobre esse universo social. Assim, a noção de solidariedade política ou irmandade não é uma categoria êmica nomeada assim pelas entrevistadas, mas uma categoria ética que se deduz a partir da forma como caracterizavam seu acesso e sua permanência em instituições e serviços públicos diversos. Serão abordadas a produção da prevenção e a conformação do cuidado do HIV/Aids a partir dessa ‘irmandade’, privilegiando seus relatos sobre o acesso e a adesão aos serviços e seus cuidados em saúde.

‘Irmandade travesti é a nossa cura’: a solidariedade como proteção

A noção de irmandade travesti expressa ao mesmo tempo uma forma de subjetividade, de formação de rede e/ou filiação e modos de transitar pelo meio social. Essa irmandade se dá sempre em função de a transgeneridade ser cotidianamente percebida e reiterada como moralmente subordinada ao padrão cisgênero, concretizando-se como um modo de existência coletiva em face dessa posição social inferiorizada. Apesar de sua potência, essa irmandade travesti não se dá sem conflitos, disputas e/ou tensões entre suas participantes e o contexto que a possibilita, muitas vezes marcado pelo trabalho sexual. Mesmo que não nomeada como irmandade travesti, essa forma de relação e constituição de si tem sido frequentemente referida pela literatura etnográfica1111 Pelúcio LM. Abjeção e Desejo: uma etnografia travesti sobre o modelo preventivo de Aids. São Paulo: Annablume/Fapesp; 2009.,1515 Azevedo, PC. “As travas de Jardim são unidas”: etnografia da performance identitária das travestis em contextos rurais e interioranos do sertão potiguar. [dissertação]. Natal: Universidade Federal do Rio Grande do Norte; 2020.,2121 Kulick D. Travesti: prostituição, sexo, gênero e cultura no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2008.,2222 Benedetti M. Toda feita: o corpo e o gênero das travestis. Rio de Janeiro: Garamond; 2005.,2323 Vartabedian J. Brazilian ‘Travesti’ Migrations: Gender, Sexualities and Embodiment Experiences. Londres: Palgrave Macmillan; 2018.,2424 Ochoa M. Queen for a Day: Transformistas, Beauty Queens, and the Performance of Femininity in Venezuela. Durham: Duke University Press; 2014..

Embora a exclusão, a violência e as demais situações de vulnerabilidade social façam parte da trajetória da grande maioria das travestis e das mulheres trans entrevistadas, a solidariedade sob o signo da irmandade travesti funciona como protetiva em diversos âmbitos da vida. No que tange às formas de evitar discriminações cotidianas, a entrevistada Fernanda [cabocla, 33 anos] explicou-nos que prefere sair acompanhada de outras mulheres trans:

teve um tempo que eu tava evitando sair muito, sair na rua, é... quê que eu faço mais?! Tem várias coisas que a gente faz, sair acompanhada sempre, sair sozinha é bem ruim.

O aprendizado sobre a prevenção ao HIV ocorre também em contextos de sociabilidade. Jeniffer [branca, 22 anos] relatou que as informações que ela tinha sobre o HIV foram obtidas na casa em que vivia, no centro da cidade, com outras travestis. A potência desse processo coletivo de identificação que conforma uma irmandade travesti foi destacada por Gracy [45 anos] ao responder se a presença de uma travesti em uma equipe de testagem ajudaria a encontrar e acolher outras travestis e mulheres trans:

[...] é aquela coisa, né? ‘De mulher pra mulher, Ma.ri.sa’. É tipo assim, se uma travesti for numa festa onde tem um montão de travesti, ela já chega aberta. Quando ela chega num lugar muito heterossexual ou, aparentemente, tudo heterossexual, na cabeça dela é isso: ‘Será que vão me ver? Será que vão falar? Será que vão aceitar?’.

Ao descreverem suas experiências com os serviços de saúde, elas ressaltam que o estabelecimento de confiança com os profissionais e a compreensão das informações sobre os cuidados oferecidos dependem da interação entre elas. Acerca do uso da PrEP, por exemplo, a grande maioria das usuárias trans e travestis afirmou ter tido informações ou acesso ao serviço de saúde que ofertavam esse método preventivo por meio de uma amiga trans. Thaisa [branca, 28 anos] nos descreveu o fluxo por intermédio do qual sua rede chegou ao uso da PrEP:

Eu já ouço falar do PrEP tem um tempo, inclusive eu que inseri minha amiga que mora comigo porque outras amigas me inseriram, aí todas nós fazemos uso juntas. [...] Elas foram primeiro, conseguiram agendar [para] elas, eu e Tereza e a Fabiana pra depois. Aí eu voltei com a Fabiana, porque eu já sabia como era. [...]. Como eu moro junto com a Fabiana., a gente vai juntas, é longe, a gente racha Uber, faz tudo junto e volta.

Além da discriminação social, um dos maiores desafios relatados para o acesso aos serviços de saúde é o estigma do HIV associado a elas1111 Pelúcio LM. Abjeção e Desejo: uma etnografia travesti sobre o modelo preventivo de Aids. São Paulo: Annablume/Fapesp; 2009.,2727 Teixeira FB, Pereira PP, Raimondi G, et al. Formas de Cuidado como Violência: Aids, silicone líquido e uso de hormônios em travestis e mulheres transexuais brasileiras. In: Facchini R, França IL, organizadores. Direitos em disputa: LGBTI+, poder e diferença no Brasil contemporâneo. Campinas: Editora Unicamp; 2020. p. 463-484.. Como destacou Gracy:

Mas você queria que o meu vizinho me visse entrando no carro do SUS? Entendeu? Meu vizinho que, de repente, saiu comigo. [...] Se botar o nome ‘SUS/Travesti’, já é doença.

Esse estigma é reiterado pela própria comunidade trans, algumas vezes internalizado como uma “possibilidade latente”1010 Monteiro S, Brigeiro M. Experiências de acesso de mulheres trans/travestis aos serviços de saúde: avanços, limites e tensões. Cad. Saúde Pública. 2019 [acesso em 2022 jan 25]; (35):e00111318. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/7Smzr3QL4tfvwZvqyKtysgt/?lang=pt.
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, ou algo naturalizado, como indica Natália [negra, 18 anos]: “mas pra mim é aquilo, se depois eu contraísse, querido, eu ia viver igual, eu ia continuar me cuidando, eu ia tomar meu remédio, e vida que segue”.

Autores2727 Teixeira FB, Pereira PP, Raimondi G, et al. Formas de Cuidado como Violência: Aids, silicone líquido e uso de hormônios em travestis e mulheres transexuais brasileiras. In: Facchini R, França IL, organizadores. Direitos em disputa: LGBTI+, poder e diferença no Brasil contemporâneo. Campinas: Editora Unicamp; 2020. p. 463-484. têm apontado a existência de uma política do segredo em torno do HIV/Aids entre as travestis, possivelmente relacionada com o medo da discriminação, a exclusão do cuidado e/ou de relações sociais. Esse silenciamento impacta tanto a política de saúde que, ao tentar fugir da associação direta entre travestis e Aids, pode acabar negligenciando essa população, como as possibilidades cotidianas de construção do cuidado integral que conjugue a travestilidade e a soropositividade para HIV2727 Teixeira FB, Pereira PP, Raimondi G, et al. Formas de Cuidado como Violência: Aids, silicone líquido e uso de hormônios em travestis e mulheres transexuais brasileiras. In: Facchini R, França IL, organizadores. Direitos em disputa: LGBTI+, poder e diferença no Brasil contemporâneo. Campinas: Editora Unicamp; 2020. p. 463-484.. Justamente para fugir do estigma do HIV e/ou pelo medo de se descobrir soropositiva, haja vista a alta prevalência de HIV/Aids nessa população77 Grinsztejn B, Jalil EM, Monteiro L, et al. Unveiling of HIV dynamics among transgender women: a respondent-driven sampling study in Rio de Janeiro, Brazil. Lancet HIV. 2017 [acesso em 2022 jan 24]; (4):e169--e176. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC5411266/.
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/article...
,88 Costa AB, Fontanari AM, Jacinto MM, et al. Population-based HIV prevalence and associated factors in male-to-female transsexuals from Southern Brazil. Arch Sex Behav. 2015 [acesso em 2022 jan 24]; 44(2):521-524. Disponível em: https://link.springer.com/article/10.1007/s10508-014-0386-z.
https://link.springer.com/article/10.100...
, muitas delas evitam a realização da testagem, como afirmou Íris [negra, 41 anos]:

Porque, às vezes, você não sabe. Às vezes, você passa mal, você vê ‘Aí, vamos fazer um teste de HIV’? ‘Não. Não vou, não quero’. Que, às vezes, essa pessoa não quer saber. Então é por isso, entendeu?

Nesse cenário, mesmo as entrevistadas que utilizam de estratégias de prevenção de forma contínua e recorrente – e especialmente quem exerce o trabalho sexual – relatam a presença do medo advindo daquela possibilidade latente. Thaísa [branca, 28 anos], ao buscar a PEP após uma situação em que se sentiu exposta, foi com duas amigas ao posto de saúde, que ficaram com ela

[...] o dia todo, aproveitaram e também fizeram exames [testagem para HIV], uma quase morreu do coração porque tinha medo do resultado, mas deu tudo certo, ninguém tem nada.

O acesso ao serviço de saúde em pares, a partir de uma configuração identificada como irmandade travesti, reitera uma forma de agir coletivamente e de se apoiar, empregada para afrontar o estigma relacionado com o HIV e possíveis discriminações nos serviços. Nesse sentido, destaca-se o relato de Sueli [branca, ...], uma travesti ativista coordenadora da ocupação LGBTQIA+, acerca do apoio social na conformação do cuidado:

Eu tô na rua. Pego as pessoas em vulnerabilidade. Pergunto várias coisas, né? Se toma algum medicamento. Se não toma. Se já ouviu falar sobre preservativo se tem o costume de se prevenir, se não tem. Como é que a relação? Se é só com homem. Se é só com mulher? Se é homem, mulher ou travesti. Homem trans e/ [...] Eu acho que tudo isso a gente precisa de mais afeto, sabe? Tipo assim, falar com as pessoas. Entender as pessoas. [...] todo dia eu tô aqui. [...]: ‘Oi. Como é que você tá se sentindo? E tá bem?’. Eu acho que o trabalho de base que eu enquanto ativista faço, [...] até chegar no posto de saúde meu amor, você já passou por Sueli. [...]. Você já passou pela rede toda.

A irmandade travesti não apenas facilita a entrada nos serviços de saúde como também possibilita o estabelecimento de relações com Organizações Não Governamentais (ONG) que promovem ações de prevenção e cuidado ao HIV como referido por Crislene [parda/negra, 38 anos]:

Olha, tem, o último [teste] que eu fiz tem menos de dois meses, né? Foi na reunião que teve no Pela Vidda [uma ONG-Aids]. No Pela Vidda, né? Isso. Lá eu fiz a testagem da saliva.

As ONGs fazem também o encaminhamento para instituições e serviços de saúde, como descrito por Sandra [branca, 36 anos]:

Numa dessas idas ao Grupo Arco-íris, aquele ‘quero saber’ ou era ‘fique sabendo’, o programa de testagem gratuita, eles me indicaram pra Fiocruz pra participar do processo de pesquisa da PrEP e aí fiquei dois ou três anos como voluntaria da PrEP.

Irmandade travesti: instrumentalização e potencialidade

Outro aspecto identificado a partir do trabalho de campo e das entrevistas diz respeito ao fato de a irmandade travesti ser comumente identificada, traduzida e instrumentalizada nas ações de prevenção e adesão ao tratamento do HIV/Aids, desenvolvidas nos serviços de saúde. Os processos sociais de identificação e solidariedade que caracterizam a irmandade travesti têm sido mobilizados pelas ações programáticas, como no caso da educação de pares e atualizados pelas próprias travestis e mulheres trans na relação com os serviços. Ao serem inseridas em projetos de saúde ou de pesquisa clínica, ocorre um processo no qual as travestis líderes em seus territórios recebem novas funções e categorias. ‘Mães’ e líderes passam a ser denominadas por profissionais e pesquisadores como ‘educadoras de par’, ‘vinculadoras’, ‘sementes (nos estudos de tipo RDS – Respondent-Driven Sampling)’. Mariana, uma liderança travesti [negra, 38 anos] e coordenadora de educadores de pares em um estudo sobre uso da PrEP, relatou que a figura do/a educador/a de par ‘nativo’ ocuparia um lugar de mediação na qualificação dos serviços e profissionais de saúde e na adesão da população-alvo aos serviços:

[...] ele educa a equipe do centro pra lidar com a questão LGBT, e faz também o acompanhamento dos usuários, [...] mas ele em geral faz o acompanhamento de usuários. É ele quem fica responsável por ligar pros usuários, lembrar os usuários que tá chegando a hora de voltar pra pegar sua medicação, né? Fazer a vinculação desses usuários com o serviço, cuidar da retenção desse usuário, da continuidade, e da melhora da adesão dele ao tratamento.

Vale assinalar que os agenciamentos desse processo, feitos pelas práticas de saúde, não são vividos passivamente pelas travestis e mulheres trans. As negociações de seus interesses estão presentes todo o tempo1111 Pelúcio LM. Abjeção e Desejo: uma etnografia travesti sobre o modelo preventivo de Aids. São Paulo: Annablume/Fapesp; 2009.,2525 Romano VF. As travestis no programa saúde da família da Lapa. Saúde e sociedade. 2008 [acesso em 2022 fev 4]; 17(2):211-219. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sausoc/a/crBYFm6crQJXXPzmtX4gZ5K/?lang=pt.
https://www.scielo.br/j/sausoc/a/crBYFm6...
,2828 Azadi B, Zélie J, Michard F, et al. HIV Prevention and Care of Transgender Women in an HIV and STI Clinic in the Paris Metropolitan Area: A Qualitative Assessment from Medical Care to Social Integration. Transg. Stud. Quartely. 2020 [acesso em 2022 fev 8]; 7(4):585-597. Disponível em: https://read.dukeupress.edu/tsq/article-abstract/7/4/585/168495/HIV-Prevention-and-Care-of-Transgender-Women-in-an?redirectedFrom=fulltext.
https://read.dukeupress.edu/tsq/article-...
.

Seus interesses se referem principalmente à ampliação de serviços voltados para prevenção e tratamento ao HIV em direção ao cuidado mais integral, capaz de abarcar temáticas já presentes no autocuidado da população trans, como uso de hormônios ou a retificação de documentos de registro a partir do contato e apoio do setor saúde. Apesar da discriminação que cerca o acesso e a adesão com relação aos serviços de saúde, a maioria das entrevistadas transitou por instituições de saúde e/ou de pesquisa clínica que promoviam um maior acolhimento das pessoas trans.

Entre as que faziam uso da PrEP, a maioria participava de estudos clínicos sobre essa profilaxia, realizados em unidades de saúde e centros de pesquisa clínica. Outras entrevistadas eram acompanhadas por uma unidade de saúde da atenção básica que promovia relações de proximidade e cuidado às residentes de ‘casarões’ do mesmo território no Centro do Rio. Havia aquelas que logravam atendimento ou demandas específicas por estarem vinculadas a ONGs-LGBTQIA+, casas de acolhimento LGBTQIA+ com parcerias diversas com o setor saúde e ao Centro de Cidadania LGBT inserido na então Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos do estado do Rio de Janeiro.

Devido ao fato de muitas entrevistadas terem acesso ao cuidado à saúde em instituições e serviços de saúde mais acolhedores à população trans, várias utilizavam termos como ‘maravilhosa’ ou ‘fofa’ para descrever as profissionais de tais serviços, em sua maioria mulheres cisgênero nomeadas de ‘meninas’ pelas usuárias. Fabiana, em acompanhamento em um serviço de PrEP, afirmou: “Foi tudo maravilhoso, você é muito bem recebido lá no PrEP, com as meninas do PrEP, que é assim que a gente chama lá [rindo] e o atendimento é muito bom”. As relações amistosas/fraternas entre travestis e mulheres trans em situação de prostituição e os/as profissionais do serviço de atenção básica de seu território, detalhadas por Romano2525 Romano VF. As travestis no programa saúde da família da Lapa. Saúde e sociedade. 2008 [acesso em 2022 fev 4]; 17(2):211-219. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sausoc/a/crBYFm6crQJXXPzmtX4gZ5K/?lang=pt.
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, foram citadas pela entrevistada Jeniffer [branca, 22 anos]:

As meninas lá são muito minhas amigas. As meninas que trabalham no posto de saúde. Elas fazem visita pra todas as travestis que moram ali na Lapa, no Casarão. [...] Tudo meu, perguntava às meninas: ‘Eu posso isso? Eu posso aquilo? Ah, esse hormônio é bom? Ah, isso é bom?’ Tudo perguntava, entendeu? Tudo, qualquer coisinha. Uma dor de barriga em mim, já pegava e perguntava às meninas: ‘Meninas, o que que eu tenho que fazer?’.

Nomear as profissionais de saúde como ‘meninas’ parece algo extremamente significativo, haja vista ser essa a forma como usualmente a maioria das entrevistadas se refere às amigas de sua rede, formada por travestis e mulheres trans. Considera-se que transladar o termo ‘meninas’ do universo trans para o das profissionais dos serviços de saúde indica o reconhecimento destas como pessoas de referência, com quem se pode contar. Ou seja, uma ‘cis aliada’ amiga que tem autorização e autoridade para integrar o âmbito dos cuidados em saúde desde dentro de sua rede de irmandade travesti.

Cabe ressaltar que se utilizou a noção de amizade, proposta por Rezende2929 Rezende CB. Entre mundos: sobre amizade, igualdade e diferença. In: Velo G, Kuschnir K, organizadores. Mediação, Cultura e Cidadania. Rio de Janeiro: Aeroplano; 2001. p. 237-264., como a criação e a manutenção de relações de afinidade e afeto a partir de:

Semelhanças que aproximam, mediando diferenças e criando laços (no caso, de amizade) entre pessoas. [...] Afinidade pode assim ser referida a uma noção de indivíduos iguais por princípio, mas não necessariamente2929 Rezende CB. Entre mundos: sobre amizade, igualdade e diferença. In: Velo G, Kuschnir K, organizadores. Mediação, Cultura e Cidadania. Rio de Janeiro: Aeroplano; 2001. p. 237-264.(243).

Essa noção de amizade dialoga com a proposta transfeminista anteriormente mencionada de criação de solidariedade política e uma política que pode se basear no afeto e no cuidado, ao mesmo tempo que não busca minimizar e/ou apagar a diferença. Os laços de amizade/solidariedade estendidos às profissionais de serviços de saúde parecem indicar bom acolhimento, maior vinculação e, consequentemente, maior adesão à prevenção ao HIV2828 Azadi B, Zélie J, Michard F, et al. HIV Prevention and Care of Transgender Women in an HIV and STI Clinic in the Paris Metropolitan Area: A Qualitative Assessment from Medical Care to Social Integration. Transg. Stud. Quartely. 2020 [acesso em 2022 fev 8]; 7(4):585-597. Disponível em: https://read.dukeupress.edu/tsq/article-abstract/7/4/585/168495/HIV-Prevention-and-Care-of-Transgender-Women-in-an?redirectedFrom=fulltext.
https://read.dukeupress.edu/tsq/article-...
. Como bem destacou Gracy:

não adianta você bater na porta de uma travesti [falando] ‘vai fazer exame’. Entendeu? Ela tem que ouvir da conhecida dela, da amiga dela, daquela que ela confia, entendeu?

Considerações finais

Os achados reafirmam que a irmandade travesti se mostra fundamental nos processos de subjetivação e na relação entre travestis e mulheres transexuais como atestado pela literatura. A possibilidade da reprodução e do uso dessa lógica pelas mulheres trans e travesti no âmbito dos serviços de saúde contribui para a percepção de acolhimento dessa população nesses dispositivos. Seria um esforço de, como apregoa Teixeira et al.2727 Teixeira FB, Pereira PP, Raimondi G, et al. Formas de Cuidado como Violência: Aids, silicone líquido e uso de hormônios em travestis e mulheres transexuais brasileiras. In: Facchini R, França IL, organizadores. Direitos em disputa: LGBTI+, poder e diferença no Brasil contemporâneo. Campinas: Editora Unicamp; 2020. p. 463-484., “descer ao cotidiano”, o que significa “trazer a prática de cuidado para os lugares onde ela é necessária e no contexto de interação das pessoas”2727 Teixeira FB, Pereira PP, Raimondi G, et al. Formas de Cuidado como Violência: Aids, silicone líquido e uso de hormônios em travestis e mulheres transexuais brasileiras. In: Facchini R, França IL, organizadores. Direitos em disputa: LGBTI+, poder e diferença no Brasil contemporâneo. Campinas: Editora Unicamp; 2020. p. 463-484.(480) e, consequentemente, promover uma maior integração social a partir do acesso a bens e serviços de cidadania2828 Azadi B, Zélie J, Michard F, et al. HIV Prevention and Care of Transgender Women in an HIV and STI Clinic in the Paris Metropolitan Area: A Qualitative Assessment from Medical Care to Social Integration. Transg. Stud. Quartely. 2020 [acesso em 2022 fev 8]; 7(4):585-597. Disponível em: https://read.dukeupress.edu/tsq/article-abstract/7/4/585/168495/HIV-Prevention-and-Care-of-Transgender-Women-in-an?redirectedFrom=fulltext.
https://read.dukeupress.edu/tsq/article-...
.

Como demonstrado, a quase totalidade dos acessos das mulheres trans e travesti aos serviços de saúde na Região Metropolitana do Rio de Janeiro se dá em função da rede de contatos entre amigas transgênero. Isso significa dizer que a lógica do cuidado entre travestis e mulheres trans ocorre de forma encarnada por dentro daquele coletivo e/ou rede que ela faz parte. Assim, tópicos relativos ao HIV/Aids, às tecnologias preventivas (preservativos, PrEP e PEP), aos prazeres e erotismo, às dificuldades e alegrias de ser uma mulher transexual e/ou travesti parecem mais tangíveis ou mesmo possíveis dentro da irmandade travesti. Em suma, os laços de solidariedade política que conformam a irmandade travesti cumprem um importante papel na ampliação do acesso aos serviços de saúde, particularmente naqueles caracterizados por um atendimento humanitário e não discriminatório.

As reflexões sobre a autonomia e a autodeterminação das pessoas trans e o cuidado de si, a partir da relação entre pares, podem ser úteis para as políticas e os serviços de saúde, na medida em que as formas de produção da saúde identificadas na ‘irmandade travesti’ parecem possibilitar melhores relações desse coletivo com os serviços de saúde. Ademais, sugerem a relevância do acolhimento na efetivação do cuidado. Isso é particularmente importante no campo da prevenção e cuidado ao HIV, ainda perpassado por práticas discriminatórias. Nessa direção, é preciso igualmente investir na formação dos profissionais de saúde, com destaque para a educação permanente, visando à transformação de práticas, processos e protocolos com vieses cis-heternormativos e à ampliação de abordagens estritamente biomédicas. Tais iniciativas não devem perder de vista a necessidade de avançar no enfrentamento das condições de vulnerabilidade sociais e em saúde vivenciadas pela grande maioria de mulheres trans e travesti no cenário nacional.

Os estudos apresentam limites na medida em que abarcaram um número restrito de entrevistas e realizaram observações participante em regiões específicas, o que dificulta a sua generalização. Todavia, seus resultados contribuem para o reconhecimento de que, por meio das formas de autocuidado, constituição de redes de solidariedade e mobilização política, as travestis e as mulheres transexuais têm dado pistas sobre como as políticas e serviços de saúde podem vincular-se a elas em seus próprios termos e demandas.

  • Suporte financeiro: não houve

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    Dez 2022

Histórico

  • Recebido
    25 Mar 2022
  • Aceito
    15 Set 2022
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
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