Memória e experiência com crianças e jovens vivendo com HIV/Aids: um ensaio autoetnográfico

Mariana de Queiroz Rocha Darmont Martha Cristina Nunes Moreira Sobre os autores

RESUMO

Apresenta-se um ensaio teórico, sustentando a proposta da autoetnografia como método no diálogo com a antropologia das emoções. A partir do exercício narrativo, de base autoetnográfica, destaca-se a importância do vínculo e do lugar ocupado por uma das pesquisadoras na vida desses jovens. Na base, encontram-se os relatos autoetnográficos das pesquisadoras, destacados a partir da experiência de 20 anos de trabalho com crianças e adolescentes, hoje jovens que convivem com HIV/Aids. As memórias, as experiências, os sentimentos e as mensagens recentemente recebidas por WhatsApp compõem o alicerce para o exercício de reflexividade. Como base de reflexividade etnográfica, a autoetnografia é uma escolha, sobretudo ética, que permite revisitar o campo do cuidado, relações e prática em perspectiva crítica e reflexiva.

PALAVRAS-CHAVE
Memória; Empatia; Antropologia cultural; Adolescente; Síndrome de Imunodeficiência Adquirida

Introdução

Saudades de ver essa luz acesa e ver você ali dentro lindíssima esperando a gente pra interrogamos. Dandara, mensagem em grupo de WhatsApp em agosto de 2021 (25 anos).

Ao iniciar este ensaio com uma epígrafe – cuja fala é de uma jovem, que um nome fictício resguarda –, desejamos iluminar uma relação ‘memorial’. Ou seja, Dandara é uma das centenas de jovens, rapazes e moças, que a primeira autora deste artigo teve a oportunidade de atender como psicóloga e pesquisadora entre os anos de 2000 e 2020 em um hospital público situado no Rio de Janeiro. Contudo, Dandara talvez seja um suporte de outras experiências, que possibilitam a construção narrativa embebida na reflexividade necessária à produção de conhecimento crítico e analítico. Ela evoca uma memória de cuidado, em que a cena é recordar a sala que hoje a primeira autora não mais ocupa, mas que ainda é revista/revisitada, traduzida na mensagem. Dandara não somente recorda e ‘memorializa a primeira autora’, mas oferece a ela uma mensagem saudosa por meio de contatos em redes sociais, que essa epígrafe condensa.

Os leitores deste ensaio poderão perguntar sobre qual o lugar da segunda autora, com a primeira, em suas memórias e experiências. Nesse sentido, a resposta não se restringe a uma função formal de quem orienta e partilha escrita, mas remete à autoria conjunta, a um exercício de triangular as experiências e incrementar a reflexividade quando a intimidade com o universo de estudo se faz componente intrínseco. A segunda autora também acompanhou algumas ‘Dandaras’ como psicóloga e pesquisadora, em outra instituição de referência para atenção de crianças e adolescentes com HIV/Aids. Ou seja, aqui as experiências se cruzam, embaçam os personagens propositalmente, a fim de não buscar uma ilusão de verdade, de pessoa ou casos a serem explorados. Tal localização das autoras vai ao encontro do que Bourdieu11 Bourdieu P, organizador. Compreender. In: A miséria do mundo. Petrópolis: Vozes, 2012. p. 683-732. destaca como a reflexividade reflexa que permite a análise do lugar ocupado pelo pesquisador, na sua localização no campo da produção do conhecimento. Dito isso, assumimos que o destaque deste ensaio recai sobre a importância do vínculo e do lugar ocupado pela primeira autora na vida desses jovens, a partir do exercício narrativo de base autoetnográfica, compartilhado e construído com a segunda autora.

Reside aqui, portanto, um exercício de produzir narrativas de segunda ordem, como testemunho de memórias ancoradas na experiência e na ficção, moduladas pelo exercício de reflexividade. Não se trata de apropriação das histórias de outros, mas de considerar como elas se tornam memórias próprias, apropriadas, que outrora não foram problematizadas pelo lugar de quem estava na posição de escutar, pesquisar, atender como profissional de saúde. Assumimos, assim, um exercício narrativo de base autoetnográfica no presente ensaio. A atividade narrativa é uma arte que coloca o narrador em uma alquimia híbrida com o fato narrado, pois, nesse artesanato, as experiências de quem narra se entrelaçam em valsa com as experiências de quem é narrado22 Benjamin W. O narrador. In: Benjamin W. Textos Escolhidos. São Paulo: Abril Cultural; 1983. p. 53-85.. “O narrador é a figura na qual o justo se encontra consigo mesmo”22 Benjamin W. O narrador. In: Benjamin W. Textos Escolhidos. São Paulo: Abril Cultural; 1983. p. 53-85.(1936).

Levar a sério o exercício de reflexividade na construção de narrativas de segunda ordem é produzir exterioridade, ou seja, distante fisicamente da experiência, ela ainda ressoa como algo da ordem da percepção, da vivência e da intimidade. Entretanto, a narrativa de segunda ordem, que retoma essas memórias brutas – e lança sobre elas um diálogo exterior –, permite assumir seu caráter de experiência, em que, como nos lembra Larrosa33 Larrosa J. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Rev Bras Educ. 2002 [acesso em 2021 set 5]; 19:20-28. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbedu/a/Ycc5QDzZKcYVspCNspZVDxC/?format=pdf&lang=pt.
https://www.scielo.br/j/rbedu/a/Ycc5QDzZ...
, estão em jogo o encontro, a coletivização, o compartilhar. Por isso nos afastamos da vivência ‘pessoal’, da percepção sensorial individualizada. Valorizar as experiências a partir das memórias da primeira autora, tornando as palavras conceitos, construções de segunda ordem, porque refletidas e reflexivamente criticadas, significa não desconsiderar a intencionalidade dos afetos e reconhecer a legitimidade da dor e enfrentamentos desses jovens. O amálgama dessas memórias – nas quais se localiza a primeira autora – produz um testemunho qualificado44 Paez AS, Moreira MCN. Sobre a performance de sofrimento na web: narrativas de mães de crianças com condições crônicas complexas de saúde em uma revista eletrônica. Physis. 2019 [acesso em 2021 set 5]; 29(1):1-18. Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=400859290004.
http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=40...
, que representa a escrita compartilhada deste ensaio, no encontro com aquilo que durante anos foi matéria-prima de trabalho.

A memória tem uma duração, mas não tem nenhuma pretensão de uma palavra verdadeira, como um retrato imóvel. As memórias propiciam versões de uma história que se deseja contar, registrar e tornar ou não testemunho público55 Boltanski L. A presença das pessoas ausentes. Parágrafo. 2015 [acesso em 2020 maio 8]; 2(3):147-156. Disponível em: https://revistaseletronicas.fiamfaam.br/index.php/recicofi/article/view/338/346.
https://revistaseletronicas.fiamfaam.br/...
. Ou seja, sobre o vivido, produzem-se interpretações. Se o vivido, a experiência66 Larrosa J. A Operação Ensaio: sobre o ensaiar e o ensaiar-se no pensamento, na escrita e na vida. Educ Realidade. 2004 [acesso em 2021 set 5]; 29(1):27-43 Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/educacaoerealidade/article/view/25417.
https://seer.ufrgs.br/index.php/educacao...
, é o plano da primeira ordem, a interpretação que se dá no retorno às memórias é a interpretação de segunda ordem, permeada por emoções, reflexividade, crítica e análise.

A verdade não é uma; diante da complexidade humana, existem múltiplas formas de interpretar as falas e os relatos das pessoas77 Tilley-Lubbs GA. Critical Authoethnography and the Vulnerable Self as Researcher. Multidisciplinary J Educational Research. 2014 [acesso em 2021 out 24]; 4(3):268-285. Disponível em: http://dx.doi.org/10.447/remie.2014.014.
http://dx.doi.org/10.447/remie.2014.014....
. Como Lubbs77 Tilley-Lubbs GA. Critical Authoethnography and the Vulnerable Self as Researcher. Multidisciplinary J Educational Research. 2014 [acesso em 2021 out 24]; 4(3):268-285. Disponível em: http://dx.doi.org/10.447/remie.2014.014.
http://dx.doi.org/10.447/remie.2014.014....
(271)enfatiza, “tanto a realidade como a ciência são interpretadas pelos seres humanos”.

Antes de proceder ao argumento e ao objetivo que sustentará este ensaio, vamos colocar em análise três movimentos instigantes na mensagem de Dandara, tornada epígrafe: 1) o primeiro remetido à saudade; 2) o segundo referente ao reconhecimento da ‘beleza’ como uma estética; 3) e o terceiro relativo à ação do verbo ‘interrogamos’. As expressões emocionais de saudade e beleza não são incompatíveis com essa ideia de que no encontro residia um ‘interrogamos’; um exercício do ‘nos’ que evoca reciprocidade, mas que não pode descartar um possível ‘interrogatório’. Vale situar o leitor que um psicólogo popularmente é o profissional autorizado a acessar os segredos, em um misto de confessor, interrogador ou penetrador da intimidade. A ‘sala da psicologia’ representa socialmente a autoridade profissional de ‘interrogar’ e ‘acolher’ as emoções com autoridade sobre o segredo. Uma assimetria reside nessa autoridade e nas diferenças entre o encontro da psicóloga ‘lindíssima’ branca, de classe média, e a menina negra, periférica, de transmissão vertical, órfã da Aids, que cresceu na história com sua experiência de tratar-se de HIV/Aids. A lembrança é da menina, hoje jovem com 25 anos.

As emoções transversalizadas nessa memória se beneficiam de um diálogo com Rezende e Coelho88 Rezende CB, Coelho MC. Antropologia das emoções. Rio de Janeiro: FGV; 2010. e Víctora e Coelho99 Víctora C, Coelho MC. A antropologia das emoções: conceitos e perspectivas teóricas em revisão. Horizontes Antropol. 2019 [acesso em 2021 out 24]; 25(54):7-21. Disponível em: http://journals.openedition.org/horizontes/3170.
http://journals.openedition.org/horizont...
ao revisitar perspectivas teóricas sobre a Antropologia das Emoções. Entretanto, é no lugar das emoções no trabalho de campo e como via de acesso à compreensão do outro que Coelho1010 Coelho MC. As emoções e o trabalho intelectual. Horizontes Antropol. 2019 [acesso em 2021 out 24]; 25(54):273-297. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ha/a/Qkr6CcCFtXLjJfSpgQdrnkN/?lang=pt.
https://www.scielo.br/j/ha/a/Qkr6CcCFtXL...
nos fará dialogar com narratividade, experiência, memória, emoção e conhecimento; e neste ensaio com a autoetnografia como método.

Partimos do argumento de que as emoções ocupam um espaço importante na produção do conhecimento antropológico, contando com a interpretação de segunda ordem das memórias e das experiências de cuidado, em um exercício autoetnográfico. Nesse caso, o campo de pesquisa é a reflexividade das autoras, no artesanato de memórias e experiências revisitadas, nesse exercício de rememoração muitas vezes acionados por mensagens recebidas via WhatsApp. Esse exercício de reflexividade relacional, distante temporalmente das cenas e do tempo em que se deram os encontros, exige da autoria uma parceria cuidadosa com aportes teóricos e reuniões de estudo e orientação. Não se dá solitariamente, em um vazio ou como um ‘não trabalho’, mas exige um labor sobre si, dobras da experiência com memórias. Isso para colocar no centro as implicações e as emoções que emergem, em um movimento que preserva os personagens de outrora – crianças, jovens, famílias, profissionais – de novos acionamentos.

Por esse ângulo, há nessa tessitura a preocupação de produção de conhecimento tendo como matéria-prima tudo o que ficou arquivado em diários, cadernos de anotações, fotos das atividades de grupo, dos passeios, e das festividades, resumos de casos, revistas com foco no ativismo juvenil e atendimento especializado aos adolescentes vivendo com HIV/Aids, das quais alguns jovens e/ou primeira autora participaram, reportagens de época, que compuseram material de trabalho com os jovens. Tais materiais, reunidos, e cuidadosamente arquivados como um campo memorial preservado, ofereceram um cimento de experiência. Esse campo de outrora não ‘é’, ele ‘está’ como suporte para releituras baseadas na reflexividade.

Esses arquivos memoriais foram relacionais e intersubjetivamente construídos, logo, são datados, e não se ocupam de um ‘encontro com uma verdade’. No entanto, assumem-se como retorno a um outro momento para reinterpretá-lo com outras ferramentas teóricas, apoiando o exercício de reflexividade, triangulando a autoria. A posição da primeira autora hoje não é da psicóloga na atenção e cuidado, mas da mestranda, pesquisadora, retornando às suas memórias e experiências em um exercício autoetnográfico.

O objetivo do artigo é – em formato de ensaio teórico – produzir um diálogo com a Antropologia das Emoções, articulando experiência e memórias da primeira autora na atenção e pesquisa com crianças e adolescentes vivendo com HIV/Aids, durante 20 anos, e encerrada em março de 2020, em diálogo com a segunda autora. A população que habita as memórias das autoras comparece como aquela das classes sociais populares, periféricas, em que a raça negra dos pretos e pardos predomina. Falamos aqui da passagem entre os anos 1990 e 2000. Há também um objetivo associado a esse primeiro, que diz respeito a valorizar que memórias e experiências, sentimentos, bem como arquivos de diários, mensagens recebidas após a saída presencial do campo de atenção, também componham suporte para reflexividade nos relatos autoetnográficos destacados pelas autoras a partir de suas experiências de muitos anos de trabalho com essas crianças, hoje jovens que convivem com HIV/Aids.

Nesse ponto específico, destacamos que, findos os 20 anos de atenção e pesquisa no serviço, relações com as crianças e os adolescentes de outrora – hoje jovens e adultos – permaneceram em espaços virtuais de troca, como nas páginas do Facebook, nas mensagens em um grupo que esses jovens construíram e convidaram a primeira autora a estar, ou mensagens enviadas no WhatsApp de forma privada. Por fim, menos como um objetivo, e mais com uma operação, este ensaio visa produzir um diálogo sincrônico com um artesanato de pesquisa em curso, cujo método se dirige à construção de conhecimento assentado na atenção e pesquisa produzida com crianças, adolescentes, jovens vivendo com HIV/Aids e seus círculos de referência institucionais (família, atenção à saúde, amizade).

Assim sendo, este ensaio teórico é costurado no encontro das memórias, diários e anotações dos anos de cuidado às crianças, adolescentes, que hoje são jovens vivendo com HIV/ Aids, e o exercício de rememoração dessa trajetória, construída e constituída com os jovens, evocadas a cada acionamento feito de forma privada ou compartilhada no grupo de WhatsApp. Cabe ao ensaio “elaborar a relação entre experiência e subjetividade, e entre experiência e pluralidade”66 Larrosa J. A Operação Ensaio: sobre o ensaiar e o ensaiar-se no pensamento, na escrita e na vida. Educ Realidade. 2004 [acesso em 2021 set 5]; 29(1):27-43 Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/educacaoerealidade/article/view/25417.
https://seer.ufrgs.br/index.php/educacao...
(31). No exercício de exterioridade e reflexividade, dá-se o encontro com a segunda autora, a fim de resgatar a qualidade das narrativas como construção de um testemunho, em que as memórias se tornam objeto legítimo para conhecimento crítico e reflexivo.

O lugar das emoções no contexto da memória e da experiência

Ao acionarmos as emoções no contexto autoetnográfico, levamos a sério as memórias e as experiências como campo. Um campo no qual a pesquisadora se coloca em questão, mas não em um processo encapsulado, todavia, com as lentes da interação, simbolismos que não podem descartar o recurso à antropologia das emoções1010 Coelho MC. As emoções e o trabalho intelectual. Horizontes Antropol. 2019 [acesso em 2021 out 24]; 25(54):273-297. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ha/a/Qkr6CcCFtXLjJfSpgQdrnkN/?lang=pt.
https://www.scielo.br/j/ha/a/Qkr6CcCFtXL...
. Com esse diálogo teórico, operamos com a reflexividade do conhecimento e da compreensão do nosso lugar nas relações de alteridade na produção de interpretações e análises.

Ao escrevermos sobre as emoções, é preciso deixar claro sobre o que entendemos por emoção, e atentar para a forma de escrevê-las, para não as transformar em limitadores, referidos a um individualismo encapsulado1111 Beatty A. How did it feel for you: emotions, narrative, and the limits of ethnograpy. American Anthropologist. 2010 [acesso em 2021 out 24]; 112(3):430-443. Disponível em: https://anthrosource.onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1111/j.1548-1433.2010.01250.x.
https://anthrosource.onlinelibrary.wiley...
. Escrever a partir das memórias e emoções nos clama uma responsabilidade para que isso não signifique um apagamento das diferentes localizações sociais ocupadas, mas para a possibilidade de trazermos a reflexividade como esse jogo de análise, crítica, localização de quem fala e escreve, dialogando com conceitos e interpretações.

Gomes e Menezes1212 Gomes E, Menezes R. Etnografias possíveis: estar ou ser de dentro. Ponto Urbe. 2008 [acesso em 2019 abr 30]; 3:1-23 Disponível em: http://journals.openedition.org/pontourbe/1748.
http://journals.openedition.org/pontourb...
e Magnani1313 Magnani JGC. De perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana. Rev Bras Ciências Soc. 2022 [acesso em 2019 abr 30]; 17(49):11-29. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0102-69092002000200002.
https://doi.org/10.1590/S0102-6909200200...
, em seus artigos, tecem considerações sobre as emoções nos estudos etnográficos a partir de um novo prisma que questiona a rigidez anteriormente postulada para que uma etnografia fosse considerada válida. Há que assumir a impossibilidade de uma antropologia em que o pesquisador esteja longe ou, posicionado de forma neutra. Como destaca Magnani1313 Magnani JGC. De perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana. Rev Bras Ciências Soc. 2022 [acesso em 2019 abr 30]; 17(49):11-29. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0102-69092002000200002.
https://doi.org/10.1590/S0102-6909200200...
, é necessário estar “de perto e de dentro”1313 Magnani JGC. De perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana. Rev Bras Ciências Soc. 2022 [acesso em 2019 abr 30]; 17(49):11-29. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0102-69092002000200002.
https://doi.org/10.1590/S0102-6909200200...
(11), exercitando nessa dinâmica as possibilidades de fazer da proximidade e da familiaridade mais um recurso crítico. O “estando ou sendo de dentro”1212 Gomes E, Menezes R. Etnografias possíveis: estar ou ser de dentro. Ponto Urbe. 2008 [acesso em 2019 abr 30]; 3:1-23 Disponível em: http://journals.openedition.org/pontourbe/1748.
http://journals.openedition.org/pontourb...
(1)1 Bourdieu P, organizador. Compreender. In: A miséria do mundo. Petrópolis: Vozes, 2012. p. 683-732. dos universos pesquisados não configura uma barreira à pesquisa etnográfica, mas um elemento a mais no processo de reflexividade a ser cultivado.

Nos primórdios da história da antropologia, as emoções só eram aceitas em escritos particulares, quase confessionais, estanques de qualquer relação com os achados e discussões, para a garantia de uma cientificidade, à la modelo positivista de ciência. No entanto, a antropologia das emoções reafirma a existência e a presença das emoções do pesquisador, rompendo com a imagem da neutralidade asséptica da ciência, ou de uma atitude confessional. O pesquisador é uma pessoa, e remetido ao campo das humanidades, pode exercitar um olhar de reflexividade crítica sobre o campo dos afetos, das emoções e das afetações.

Dialogando com Coelho1010 Coelho MC. As emoções e o trabalho intelectual. Horizontes Antropol. 2019 [acesso em 2021 out 24]; 25(54):273-297. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ha/a/Qkr6CcCFtXLjJfSpgQdrnkN/?lang=pt.
https://www.scielo.br/j/ha/a/Qkr6CcCFtXL...
e Gomes e Menezes1212 Gomes E, Menezes R. Etnografias possíveis: estar ou ser de dentro. Ponto Urbe. 2008 [acesso em 2019 abr 30]; 3:1-23 Disponível em: http://journals.openedition.org/pontourbe/1748.
http://journals.openedition.org/pontourb...
, não há pensamento ou produção dissociados da emoção, ou seja, a emoção e a razão se articulam com o que se entende por pensamentos incorporados. É preciso sentir para entender, para que então a escrita se materialize. Nessa lógica, a escrita reflexiva pode ser um método de investigação77 Tilley-Lubbs GA. Critical Authoethnography and the Vulnerable Self as Researcher. Multidisciplinary J Educational Research. 2014 [acesso em 2021 out 24]; 4(3):268-285. Disponível em: http://dx.doi.org/10.447/remie.2014.014.
http://dx.doi.org/10.447/remie.2014.014....
. A partir desta, estimula-se o processo de articular o pensamento e as emoções, refletindo sobre lugares, poderes e privilégios. Refletir sobre quem somos na cena, na relação e no lugar que ocupamos, considerando inclusive o lugar de autoridade sobre a produção do conhecimento e intervenções nas cenas de cuidado. Esses lugares atravessam as autoras deste ensaio e as impulsionam na aproximação com esse campo teórico nas fricções entre racionalidade e sensibilidade.

Não há automatismo nos encontros e análises que constituem as pesquisas sociais e antropológicas. Mobilizar as emoções, os afetos e os sentimentos é uma via metodológica que une, mistura e incorpora os dados e os achados etnográficos com a biografia do pesquisador. É nessa encruzilhada que é possível compreender a experiência emocional do outro. Reconhecer os sentimentos do pesquisador durante o trabalho de campo e a produção de conhecimento se torna uma aquisição no exercício autoetnográfico. Assim, na antropologia, as emoções podem assumir seus espaços nos textos públicos, o que outrora era destinado e aceito apenas nos textos privados, a exemplo dos diários1010 Coelho MC. As emoções e o trabalho intelectual. Horizontes Antropol. 2019 [acesso em 2021 out 24]; 25(54):273-297. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ha/a/Qkr6CcCFtXLjJfSpgQdrnkN/?lang=pt.
https://www.scielo.br/j/ha/a/Qkr6CcCFtXL...
.

“O sentimento [comparece] como aquilo que pavimenta o caminho para a compreensão do outro”1010 Coelho MC. As emoções e o trabalho intelectual. Horizontes Antropol. 2019 [acesso em 2021 out 24]; 25(54):273-297. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ha/a/Qkr6CcCFtXLjJfSpgQdrnkN/?lang=pt.
https://www.scielo.br/j/ha/a/Qkr6CcCFtXL...
(282), para pensarmos o pesquisador com suas dimensões humanas, considerando os atravessamentos e produções, nessa fricção com o outro em suas humanidades.

Favret-Saada1414 Favret-Saada J. Être affecté. In: Gradhiva: Revue d’Histoire et d’Àrchives de L’ánthropologie. 1990. p. 3-9. Traduzido por: Paula Siqueira e Tania Stolze Lima. “Ser afetado” de Jeanne Favret-Saada. Cadernos de Campo. 2005 [acesso em 2022 jan 5]; 13:155-161. Disponível em: https://www.academia.edu/40823768/_Ser_afetado_de_Jeanne_Favret_Saada_PAULA_SIQUEIRA_T%C3%82NIA_STOLZE_LIMA.
https://www.academia.edu/40823768/_Ser_a...
destaca as emoções no interior da pesquisa antropológica, a partir da capacidade do pesquisador ser afetado, ao interagir com, e acessar a experiência do outro. Para ela, a pesquisa apoiada no exame reflexivo das emoções do pesquisador ocorre em três momentos: quando se deixa afetar, quando a experiência é narrada e posteriormente na análise. Segundo a autora, os tempos da experiência, da narrativa e da análise não se sobrepõem.

A expressão das emoções pode seguir no exercício de narrativas literárias, sem que isso implique reduzir o texto e as análises a uma realidade subjetiva do pesquisador. A forma de trazer a emoção no contexto das memórias e da experiência se dá a partir do conhecimento posicionado, levando em conta a intersubjetividade no processo de afetar-se e deixar afetar, trazendo uma experiência situada88 Rezende CB, Coelho MC. Antropologia das emoções. Rio de Janeiro: FGV; 2010..

A emoção antropológica é sempre situada, representada como elemento social. Ao analisá-la, temos acesso à cultura e às formas como se estruturam as relações sociais. As emoções também organizam espaços públicos e privados e tensionam os processos de individuação e pertencimento88 Rezende CB, Coelho MC. Antropologia das emoções. Rio de Janeiro: FGV; 2010..

Uma metodologia que considera as emoções como forma de conhecer e de acessar populações vulnerabilizadas ou temas sensíveis, a partir de um conhecimento posicionado, abre fronteiras para novas formas de fazer pesquisa e novas formas de narrar – além de ser potente para pensarmos os processos de inclusão e exclusão ainda presentes nas experiências em tela neste ensaio: de jovens que vivem com HIV/Aids.

Coelho1010 Coelho MC. As emoções e o trabalho intelectual. Horizontes Antropol. 2019 [acesso em 2021 out 24]; 25(54):273-297. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ha/a/Qkr6CcCFtXLjJfSpgQdrnkN/?lang=pt.
https://www.scielo.br/j/ha/a/Qkr6CcCFtXL...
(286) aborda a nostalgia como “mola propulsora da antropologia”, conferindo a possibilidade de recuperar algo que está circunscrito na nossa memória pessoal. Segundo a autora, o duplo da nostalgia é a esperança, pois, quando nos dobramos nas experiências passadas, pensamos e indicamos uma perspectiva de futuro. É também uma forma de preservar, manter vivo algo que está prestes a desaparecer na esperança de reaver e recuperar algo mesmo que circunscrito, muitas vezes, ao campo da imaginação.

Retornando à primeira referência a Dandara trazida na epígrafe que evoca a saudade, lida aqui como nostalgia, vale refletir e questionar sobre a validade e as dimensões éticas de convocar/convidar esses jovens com quem foram estabelecidos vínculos outrora, em outro momento de experiências e memórias, para um lugar que não voltará a existir. Essa reflexão comparece aqui, porque a primeira e a segunda autora se dão conta em um determinado momento da construção de uma formação como mestra, que fazer pesquisas pode significar colocar o pesquisador como a fonte de produção de acervos para pesquisa. Isso por meio do retorno a sua própria experiência, com provocações de orientação e estudo, organização de acervos físicos e de memórias, como notas atuais de um campo passado. Com isso, assume-se não reforçar ou mesmo deflagrar uma esperança de retorno de uma relação que não pode mais se estabelecer como anteriormente foi vivida por crianças e jovens atendidos em um serviço e participantes de uma pesquisa, conduzida e encerrada.

Dialogando com Coelho1010 Coelho MC. As emoções e o trabalho intelectual. Horizontes Antropol. 2019 [acesso em 2021 out 24]; 25(54):273-297. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ha/a/Qkr6CcCFtXLjJfSpgQdrnkN/?lang=pt.
https://www.scielo.br/j/ha/a/Qkr6CcCFtXL...
nisso que ela denomina como nostalgia do método, questionamo-nos como o acionamento das memórias e das experiências estabelecidas com esses jovens durante tantos anos é submetido a um exercício de reflexividade ética contínua. Isso porque essa nostalgia do método pode gerar uma expectativa irreal de retorno de algo que se findou. No caso, a partir da função que esse ensaio ocupa – conferir a possibilidade de recuperar/acessar o que estava circunscrito na esfera de algo qualificado como ‘memórias pessoais’ – de atribuir legitimidade, por meio de um esforço autoetnográfico, que assume o próprio, o ‘pessoal’ como objeto.

Considerar eticamente a nostalgia antropológica no interior do método nas pesquisas sociais com populações vulnerabilizadas, ou quando abordamos assuntos considerados delicados, não é produzir um apagamento das relações de poder que permeiam as relações entre pesquisador e pesquisados, mas cuidar para que essas relações não sejam produtoras de opressão, em uma ética relacional não hegemônica1515 Gesser M, Fietz H. Ética do Cuidado e a experiência da deficiência: uma entrevista com Eva Feder Kittay. Rev Estudos Femin. 2021 [acesso em 2021 dez 1]; 29(2):1-12. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/64987/47491.
https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref...
. Em síntese, como dar legitimidade a um conhecimento cuja matéria-prima são as memórias registradas em diários, arquivos, de uma profissional de saúde tornando-se pesquisadora? Como fazer desse exercício também um compromisso ético de não acionar jovens para novas conversas com alguém que não mais será a ‘psicóloga bonita da sala a interrogar’? Como reafirmar que memórias de cuidado revisitadas a posteriori com reflexividade teórica, metodológica e conceitual podem gerar conhecimento de segunda ordem?

As possíveis tentativas de respostas são assumidas aqui na próxima seção ao discutir a autoetnografia como método para reunir memória e experiência, embebidas na discussão anterior sobre a antropologia das emoções.

Uma metodologia para dialogar com memória e experiência: a proposta autoetnográfica

Retornamos aqui à expressão ‘interrogamos’ de Dandara na epígrafe do artigo. As emoções em jogo na cena de atendimento clínico remetem às assimetrias de posição entre a psicóloga e sua paciente, em um enquadre no qual não se pode deixar de considerar o que possivelmente está em jogo na atenção a uma adolescente vivendo com HIV/Aids. O acolhimento não está dissociado de um exercício de investigar, interrogar, gerenciar e ter notícias sobre um autocuidado, autocontrole, em que o exercício da sexualidade e a adolescência constroem seus duplos, sofrem com exigências de poderosas estruturas sociais, nas quais operam estigmas e discriminações, exigências e regulações. Como esse enquadre à época era também de uma pesquisa, precisamos assumir que um ‘tempero de interrogatório’ nas questões a serem respondidas a um protocolo aí também se fizessem presentes.

Nesse ponto Bourdieu11 Bourdieu P, organizador. Compreender. In: A miséria do mundo. Petrópolis: Vozes, 2012. p. 683-732., nos lembra que toda pesquisa – seja com metodologia qualitativa ou quantitativa – deve ser compreendida no contexto das “interações sociais que ocorrem sob a pressão das estruturas sociais”11 Bourdieu P, organizador. Compreender. In: A miséria do mundo. Petrópolis: Vozes, 2012. p. 683-732.(694). A diferença entre os materiais econômicos, culturais e simbólicos entre pesquisadores e pesquisados precisa ser considerada para a prevenção de uma abordagem violenta. Ademais, com Ayres1616 Ayres JRCM. Sujeito, Subjetividade e práticas de saúde. Ciênc. Saúde Colet. 2011 [acesso em 2018 dez 1]; 6(1):63-72. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1413-81232001000100005.
https://doi.org/10.1590/S1413-8123200100...
, vale lembrar que o ato da linguagem, como uma instância, pode diminuir ou aumentar as distâncias entre profissionais de saúde e sujeitos atendidos, assim como entre pesquisadores e pesquisados.

Seguindo Larrosa33 Larrosa J. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Rev Bras Educ. 2002 [acesso em 2021 set 5]; 19:20-28. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbedu/a/Ycc5QDzZKcYVspCNspZVDxC/?format=pdf&lang=pt.
https://www.scielo.br/j/rbedu/a/Ycc5QDzZ...
, o lugar de narradora é um exercício de reflexão crítica na escolha de palavras que darão sentido às experiências e às memórias pregressas de cuidado. Dessa experiência encarnada que foi construída com os jovens e suas relações de parentesco, as palavras escolhidas dão dicas sobre os mecanismos de subjetivação, na construção de realidades e produção de sentido.

Valorizando as contribuições de Tanabe1717 Tanabe RF. Corpos híbridos – a tecnologia incorporada na vida: explorando as relações de cuidado de crianças com condições crônicas complexas em Terapia Intensiva. [tese]. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2020. 258 f. e Moreira1818 Moreira MCN. A Dádiva da Saúde: sociabilidade e voluntariedade no associativismo dos Res. [tese]. Rio de Janeiro: Iuperj; 2005. 235 p., de que todo texto tem algo ficcional, reencontramos Favret-Saada1414 Favret-Saada J. Être affecté. In: Gradhiva: Revue d’Histoire et d’Àrchives de L’ánthropologie. 1990. p. 3-9. Traduzido por: Paula Siqueira e Tania Stolze Lima. “Ser afetado” de Jeanne Favret-Saada. Cadernos de Campo. 2005 [acesso em 2022 jan 5]; 13:155-161. Disponível em: https://www.academia.edu/40823768/_Ser_afetado_de_Jeanne_Favret_Saada_PAULA_SIQUEIRA_T%C3%82NIA_STOLZE_LIMA.
https://www.academia.edu/40823768/_Ser_a...
, relativizando a ideia de que as declarações dos informantes em uma pesquisa, as falas e os relatos se constituam como verdades inabaláveis; ao mesmo tempo buscando valorizar um acervo vivo de memórias que não precisam ‘ser dos outros’, posicionados como participantes de pesquisa. Isso porque esses outros estão, estiveram, em cenas nas quais a autora principal deste ensaio estava. E naquele momento, ela não colocou sua experiência como objeto, mas vinculou ‘aos outros’ – qualificados como aqueles vivendo com HIV/Aids – o estatuto de participantes, ou protagonistas da experiência.

A experiência vivida, encarnada, está na memória de quem outrora ‘interrogava’ e agora é a interrogada pelo exercício de reflexividade e exterioridade com uma interlocutora que a provoca como segunda autora do ensaio. A experiência encarnada é uma forma de estar no mundo e lidar com a realidade66 Larrosa J. A Operação Ensaio: sobre o ensaiar e o ensaiar-se no pensamento, na escrita e na vida. Educ Realidade. 2004 [acesso em 2021 set 5]; 29(1):27-43 Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/educacaoerealidade/article/view/25417.
https://seer.ufrgs.br/index.php/educacao...
. Vale ressaltar que vínculos com as outrora crianças e adolescentes, hoje jovens, perduram nos espaços virtuais do grupo de WhatsApp que organizaram e incluíram a primeira autora, e nos perfis do Facebook e do Instagram. Ou seja, vínculos de afeto e contato têm uma duração, facilitada pelas mediações das redes sociais virtuais.

Faz-se necessário recorrer a uma pergunta, que nos fez assumir a legitimidade de memórias de quem pesquisou e cuidou, em um lugar de primeira pessoa: quais são as ‘supostas verdades’ contidas nas falas, nas respostas das entrevistas, nas observações participantes de um campo, ou nas observações etnográficas em cenas atuais, que não podem estar nas memórias de quem hoje se permite resgatar, refletir e produzir conhecimento sobre elas?

Subvertendo a lógica da verdade, a entendemos aqui como areia que escoa entre os dedos, que se movimenta, que se remodela, que abre caminho para o novo. Propomos um deslocamento da visão positivista da ciência, que considera as falas e seus produtos a partir de uma perspectiva dualista, para pensar a partir de uma “perspectiva política e crítica”33 Larrosa J. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Rev Bras Educ. 2002 [acesso em 2021 set 5]; 19:20-28. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbedu/a/Ycc5QDzZKcYVspCNspZVDxC/?format=pdf&lang=pt.
https://www.scielo.br/j/rbedu/a/Ycc5QDzZ...
(19).

Assumimos a comunicação, a interpretação e a análise a partir das ambiguidades do que se situa no campo da afecção1414 Favret-Saada J. Être affecté. In: Gradhiva: Revue d’Histoire et d’Àrchives de L’ánthropologie. 1990. p. 3-9. Traduzido por: Paula Siqueira e Tania Stolze Lima. “Ser afetado” de Jeanne Favret-Saada. Cadernos de Campo. 2005 [acesso em 2022 jan 5]; 13:155-161. Disponível em: https://www.academia.edu/40823768/_Ser_afetado_de_Jeanne_Favret_Saada_PAULA_SIQUEIRA_T%C3%82NIA_STOLZE_LIMA.
https://www.academia.edu/40823768/_Ser_a...
a partir de uma perspectiva antropológica dos afetos e sofrimentos. O argumento que me direciona “é como transformar a história do outro como parte do vivido comum?”1919 Diniz D. Como falar de temas sensíveis. Banquinha 29 de agosto 2021. Instagram.. Partimos do exercício de responder à pergunta do que motiva, afeta e está em jogo na escolha de retornar aos jovens que foram atendidos durante 20 anos de uma experiência anterior. Aquelas crianças e adolescentes memorializados possibilitam a geração de um acervo material – de arquivos de eventos, recortes de jornais, diários reflexivos sobre as práticas – exuberante, não trabalhado, possível de ser revisitado. Isso sem imputar a esses jovens de hoje novos os mesmos sentimentos de ‘interrogatórios’.

Pensar uma autoetnografia de acervos de memórias e experiências pode permitir, como nos inspira Benjamin22 Benjamin W. O narrador. In: Benjamin W. Textos Escolhidos. São Paulo: Abril Cultural; 1983. p. 53-85., a distância e a proximidade do que se observa influenciando no que se vê, que no cotidiano irrefletido impede o jogo de aproximação e distanciamento limitando o que pode ser observado. A experiência, como fluido vital, estabelece-se na interioridade das relações e dos afetos33 Larrosa J. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Rev Bras Educ. 2002 [acesso em 2021 set 5]; 19:20-28. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbedu/a/Ycc5QDzZKcYVspCNspZVDxC/?format=pdf&lang=pt.
https://www.scielo.br/j/rbedu/a/Ycc5QDzZ...
. Para a construção de experiência e memória, é preciso tempo, contemplação, retorno, requer dobra. Segundo Larossa33 Larrosa J. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Rev Bras Educ. 2002 [acesso em 2021 set 5]; 19:20-28. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbedu/a/Ycc5QDzZKcYVspCNspZVDxC/?format=pdf&lang=pt.
https://www.scielo.br/j/rbedu/a/Ycc5QDzZ...
(21–25), a experiência representa:

[...] a possibilidade de que algo nos aconteça, ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção é a delicadeza.

Este convite feito por Larrosa33 Larrosa J. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Rev Bras Educ. 2002 [acesso em 2021 set 5]; 19:20-28. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbedu/a/Ycc5QDzZKcYVspCNspZVDxC/?format=pdf&lang=pt.
https://www.scielo.br/j/rbedu/a/Ycc5QDzZ...
, de suspender o automatismo da ação e dar-se tempo e espaço, pode nos servir como conexão a considerar a memória reunida nos arquivos pessoais, nas notas e recordações, como também um lugar de encontro, a ser revisitado com outros olhos. Exatamente aqui recorremos à autoetnografia como método e exercício de valorizar a experiência pregressa, decantada, revisitada.

Santos2020 Santos SMA. O método da autoetnografia na pesquisa sociológica: atores, perspectivas e desafios. PLURAL. 2017 [acesso em 2021 out 24]; 24(1):214-241. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/plural/article/view/113972.
https://www.revistas.usp.br/plural/artic...
descreve a autoetnografia como uma metodologia que bebe na fonte da etnografia, mas que se propõe construir um relato a partir de um lugar de pertencimento, situada culturalmente, tendo a reflexividade um papel fundamental para a avaliação dos conteúdos na relação intersubjetiva entre pesquisador e pesquisados; entre pesquisador e suas memórias, na produção de textos literários, nos quais as experiências biográficas são um recurso relevante para transformar a experiência de outrora em objeto de estudo.

Como método, “reconhece e envolve a subjetividade, a emotividade e a perspectiva do pesquisador sobre a investigação”2020 Santos SMA. O método da autoetnografia na pesquisa sociológica: atores, perspectivas e desafios. PLURAL. 2017 [acesso em 2021 out 24]; 24(1):214-241. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/plural/article/view/113972.
https://www.revistas.usp.br/plural/artic...
(224). A autoetnografia, além de método, pode ser também uma técnica para a produção de dados em uma pesquisa com análise qualitativa, assim como o próprio produto da pesquisa.

A partir do diagrama de Santos2020 Santos SMA. O método da autoetnografia na pesquisa sociológica: atores, perspectivas e desafios. PLURAL. 2017 [acesso em 2021 out 24]; 24(1):214-241. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/plural/article/view/113972.
https://www.revistas.usp.br/plural/artic...
(219), a autoetnografia se equilibra em uma tríade, sendo a etnografia, a orientação metodológica e a análise dos conteúdos, esses analisados considerando a reflexividade intersubjetiva para pensar tanto o pesquisador como os conteúdos nos conteúdos autobiográficos; em que a interpretação precisa considerar os aspectos culturais e sociais. Assim, a autoetnografia tem um “caráter político e transformador”2020 Santos SMA. O método da autoetnografia na pesquisa sociológica: atores, perspectivas e desafios. PLURAL. 2017 [acesso em 2021 out 24]; 24(1):214-241. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/plural/article/view/113972.
https://www.revistas.usp.br/plural/artic...
(219), considerando que ela não se resume à produção de narrativas, mas à sua análise crítica.

Tilley-Lubbs77 Tilley-Lubbs GA. Critical Authoethnography and the Vulnerable Self as Researcher. Multidisciplinary J Educational Research. 2014 [acesso em 2021 out 24]; 4(3):268-285. Disponível em: http://dx.doi.org/10.447/remie.2014.014.
http://dx.doi.org/10.447/remie.2014.014....
fala sobre a autoetnografia crítica, que combina a autoetnografia com a pedagogia crítica que auxilia o pesquisador a refletir e a reconhecer sua localização social e privilégios no encontro com as emoções do grupo que estuda, evitando a perpetuação de uma abordagem opressora.

Reed-Danahay2121 Reed-Danahay DE. Auto/Ethnography: Rewriting the Self and the Social. American Ethnologist. 2000 [acesso em 2021 out 24]; 27(2):551-553. Disponível em: https://anthrosource.onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1525/ae.2000.27.2.551.
https://anthrosource.onlinelibrary.wiley...
indica a importância da reflexividade antropológica na autoetnografia, sendo um potente método que permite ao pesquisador refletir sobre as relações de poder presentes nas relações sociais refletidas nas pesquisas e, com isso, engendrar análises e críticas sociais.

Valorizar e incluir os sentimentos e os afetos do pesquisador nos achados, nas análises e nas críticas impacta e influencia a escrita acadêmica, que não mais afasta as emoções, mas a traz para a interioridade do que se observa. A autoetnografia permite uma escrita que se assemelha, se utiliza ou se aproxima das formas de escritas literárias, aproximando os escritos acadêmicos da população geral, expandindo os limites e o alcance dos achados de pesquisa, transbordando para além dos muros formais da academia. A autoetnografia realinha o pesquisador deslocando da exterioridade para o interior da pesquisa2222 Méndez M. Autoethnography as a research method: Advantages, limitations and criticisms. Theoretical Discussion Paper. 2013 [acesso em 2021 out 24]; 15(2):279-287. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/260778406_Autoethnography_as_a_research_method_Advantages_limitations_and_criticisms.
https://www.researchgate.net/publication...
.

Segundo Favret-Saada1414 Favret-Saada J. Être affecté. In: Gradhiva: Revue d’Histoire et d’Àrchives de L’ánthropologie. 1990. p. 3-9. Traduzido por: Paula Siqueira e Tania Stolze Lima. “Ser afetado” de Jeanne Favret-Saada. Cadernos de Campo. 2005 [acesso em 2022 jan 5]; 13:155-161. Disponível em: https://www.academia.edu/40823768/_Ser_afetado_de_Jeanne_Favret_Saada_PAULA_SIQUEIRA_T%C3%82NIA_STOLZE_LIMA.
https://www.academia.edu/40823768/_Ser_a...
, esta separação entre pesquisador e sujeito de pesquisa, entre ‘nós e eles’, como ela se refere, serviria como uma precaução da “contaminação do objeto”1414 Favret-Saada J. Être affecté. In: Gradhiva: Revue d’Histoire et d’Àrchives de L’ánthropologie. 1990. p. 3-9. Traduzido por: Paula Siqueira e Tania Stolze Lima. “Ser afetado” de Jeanne Favret-Saada. Cadernos de Campo. 2005 [acesso em 2022 jan 5]; 13:155-161. Disponível em: https://www.academia.edu/40823768/_Ser_afetado_de_Jeanne_Favret_Saada_PAULA_SIQUEIRA_T%C3%82NIA_STOLZE_LIMA.
https://www.academia.edu/40823768/_Ser_a...
(157). Será que é possível esse higienismo metodológico ou essa ideia se sustentaria em uma errônea ilusão que, nas pesquisas qualitativas, essa divisão atravessaria o momento de coleta de dados e permaneceria até a fase da interpretação dos dados? Isso desconsiderando que toda comunicação é perpassada pelo que se é afetado, por um “quantum de afeto”1414 Favret-Saada J. Être affecté. In: Gradhiva: Revue d’Histoire et d’Àrchives de L’ánthropologie. 1990. p. 3-9. Traduzido por: Paula Siqueira e Tania Stolze Lima. “Ser afetado” de Jeanne Favret-Saada. Cadernos de Campo. 2005 [acesso em 2022 jan 5]; 13:155-161. Disponível em: https://www.academia.edu/40823768/_Ser_afetado_de_Jeanne_Favret_Saada_PAULA_SIQUEIRA_T%C3%82NIA_STOLZE_LIMA.
https://www.academia.edu/40823768/_Ser_a...
(159) que seleciona o que deve ser dito e o que deve permanecer oculto.

Propomos um olhar para o objeto no enlace, na relação, interseção e hibridismo, na produção de conhecimento a partir das experiências e memórias partilhadas; considerando que a experiência é intersubjetiva e que, nessa fusão do que é coletivo e particular de cada um, novas construções de sentido são elaboradas2323 Paez AS, Moreira MCN. Dádivas e testemunhos: o compartilhamento de experiências e memórias de mães de crianças com condições complexas de saúde. Cad. Saúde Pública. 2021 acesso em 2021 dez 5]; 37(1):1-11. Disponível: https://www.scielo.br/j/csp/a/hB4SCTVhxfj4TWpzrCt5cCD/?lang=pt.
https://www.scielo.br/j/csp/a/hB4SCTVhxf...
.

Refletindo sobre possíveis e pertinentes críticas, sustentamos com Santos2020 Santos SMA. O método da autoetnografia na pesquisa sociológica: atores, perspectivas e desafios. PLURAL. 2017 [acesso em 2021 out 24]; 24(1):214-241. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/plural/article/view/113972.
https://www.revistas.usp.br/plural/artic...
que “toda etnografia é uma autoetnografia na medida em que revela investimentos pessoais, interpretações e análises”2020 Santos SMA. O método da autoetnografia na pesquisa sociológica: atores, perspectivas e desafios. PLURAL. 2017 [acesso em 2021 out 24]; 24(1):214-241. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/plural/article/view/113972.
https://www.revistas.usp.br/plural/artic...
(221). A autoetnografia crítica77 Tilley-Lubbs GA. Critical Authoethnography and the Vulnerable Self as Researcher. Multidisciplinary J Educational Research. 2014 [acesso em 2021 out 24]; 4(3):268-285. Disponível em: http://dx.doi.org/10.447/remie.2014.014.
http://dx.doi.org/10.447/remie.2014.014....
permite examinar a própria prática da/o pesquisadora/or.

Dialogando com Cooper e Lilyea2424 Cooper R, Lilyea BV. I’m Interested in Autoethnography, but How Do I Do It? The Qualitative Report. 2022 [acesso em 2022 jan 19]; 27(1):197-208. Disponível em: https://nsuworks.nova.edu/tqr/vol27/iss1/14/.
https://nsuworks.nova.edu/tqr/vol27/iss1...
, a autoetnografia é um método de pesquisa qualitativa que permite ao pesquisador se observar, em exercício de reflexividade, e, com isso, oportuniza repensar e revisar as próprias experiências. Para além de ser um método, reflete a nossa forma de ser no mundo, a “[...] Autoetnografia não é algo que fazemos separado de quem somos, como nos relacionamos com o mundo e as maneiras como refletimos sobre nossas vidas”2424 Cooper R, Lilyea BV. I’m Interested in Autoethnography, but How Do I Do It? The Qualitative Report. 2022 [acesso em 2022 jan 19]; 27(1):197-208. Disponível em: https://nsuworks.nova.edu/tqr/vol27/iss1/14/.
https://nsuworks.nova.edu/tqr/vol27/iss1...
(206).

A autoetnografia pode tornar as memórias reflexivamente acionadas, e a experiência, construída, como campo, assumindo sua validade empírica e ética na produção de conhecimento qualificado.

Fragmentos de mensagens na conexão do outrora com o presente: algumas presenças

A epígrafe chega como uma mensagem disparada no grupo de WhatsApp do qual a primeira autora faz parte com alguns desses jovens. Nas reuniões de orientação, essa mensagem tornada epígrafe foi submetida a uma provocação sobre a validade de manter o objeto inicial, em que esses jovens seriam submetidos a um novo protocolo de pesquisa: com convites para entrevistas, em salas fechadas, com gravador sobre a mesa, no espaço em que outrora eles foram atendidos como usuários do serviço ou respondentes de questionários. Foi possível pensar sobre o quanto retornar ao hospital que eles frequentavam, agora tornando-o um novo campo de pesquisa, não alimentaria uma ilusão da retomada de uma cena clínica, gerando uma fantasia perniciosa de ‘reativar a sala hoje com a luz apagada’, em um compromisso não mais realizável.

A fala de Dandara não é ingênua, não revela uma dificuldade com as normas formais da língua portuguesa. “... A luz acesa pra interrogamos” sugere uma ambiguidade de quem interroga quem. Das relações de poder que circulam nessa rede de relações, em que estar lá ativamente interrogando, extraindo informações pautadas em veracidade esperada pela ciência, pode significar também estar disponível para ser interrogada, para revelar verdades que a ciência possa ocultar. Ou ainda, nesse hibridismo, ser parte dessa construção intersubjetiva de viver, conviver e sobreviver vivendo com HIV/Aids; ou mesmo nessa gangorra, nessa alternância de posição e circulação de afetos e investimentos ou não em cuidado.

Essa mensagem que a epígrafe ilumina chega após dois anos de encerrada a cena clínica, na qual crianças, adultos, gestantes e jovens que vivem com HIV/Aids eram os concentradores da atenção clínica e de pesquisa. A essa mensagem da epígrafe, ainda se reúnem memórias de outras mensagens, recebidas no WhatsApp privado, atualmente, ou ainda compartilhadas nesse mesmo aplicativo em grupo:

Todas as vezes que vou ao hospital e me sento na sala de espera eu fico olhando para o corredor pensando que a qualquer momento você vai aparecer. Fico esperando vc virar o corredor, vestindo aquele jaleco e vir me chamar. Muito louco isso né? (Valter, 47 anos. Fala endereçada para primeira autora, em um dia de atendimento remoto, por meio de ligação de vídeo pelo WhatsApp, que ocorreu no mesmo dia de consulta médica).

A fala desse homem, cujos atendimentos foram mantidos de forma remota após a saída da primeira autora do hospital, faz refletir que não se trata de restabelecer uma relação terapêutica, mas do lugar que a cena terapêutica estabelece, e das memórias de uma experiência que interliga tempo e espaço. É o que se perde, o que se rompe, o que se coloca em suspensão quando quem dividia a responsabilidade do cuidado pertencia à equipe de saúde direta e agora esse cuidado se organiza na exterioridade.

Tô aqui esperando ser atendido pela Dra. Muito ruim sem vc aqui. Lembro de vc constantemente. Espero que esteja tudo bem. E espero que de alguma maneira a gente volte a fazer a nossa análise. (Enzo, 49 anos, em mensagem privada de WhatsApp para primeira autora).

Boa tarde! Tô aqui no hospital para atendimento, e me lembrei de vc... aliás tenho me lembrado de vc várias vezes... do tempo em que eu podia ter desfrutado mais da sua companhia e ensinamento. Saudades das nossas terapias. Espero que esteja tudo bem com vc. (Enzo, 49 anos, em mensagem privada de WhatsApp para primeira autora).

Oi, como vai vc?!?! Tenho andado com dois sentimentos profundos... arrependimento de não ter aproveitado o máximo as nossas análises, pois vc era a pessoa mais certa que encontrei, e saudade de colocar nossa sintonia em órbita, com toda sinceridade tenho vontade de enviar uma carta, texto... qualquer coisa para o seu departamento pedindo que vc volte, pois vc está fazendo muita falta para os seus pacientes. (Enzo, 49 anos, em mensagem privada de WhatsApp para primeira autora).

Essas mensagens foram endereçadas em três momentos distintos, com espaço de um ano entre a primeira e a última. Apesar de ter sido enviada por um homem adulto, revela mais do que uma relação transferencial estabelecida. A ele, foi ofertada a continuidade dos atendimentos remotos, após a primeira mensagem, ou seja, fora do espaço hospitalar, mas ao contrário do que ele repete nas mensagens, sobre o desejo de retornar às ‘nossas análises’, ele sumiu de cena quando esse novo lugar foi proposto. Assim, mais do que a relação terapêutica, a materialidade espacial parece garantir uma segurança de permanência da vida, uma estabilidade a partir do encontro no local de cuidados.

O que chama atenção é a expressão usada por ele ao se referir ao próprio processo terapêutico como ‘nossas terapias’, no caráter relacional construído na clínica, na qual a primeira autora deste ensaio se localiza como testemunha, e remete a um diálogo com Favret-Saada1414 Favret-Saada J. Être affecté. In: Gradhiva: Revue d’Histoire et d’Àrchives de L’ánthropologie. 1990. p. 3-9. Traduzido por: Paula Siqueira e Tania Stolze Lima. “Ser afetado” de Jeanne Favret-Saada. Cadernos de Campo. 2005 [acesso em 2022 jan 5]; 13:155-161. Disponível em: https://www.academia.edu/40823768/_Ser_afetado_de_Jeanne_Favret_Saada_PAULA_SIQUEIRA_T%C3%82NIA_STOLZE_LIMA.
https://www.academia.edu/40823768/_Ser_a...
sobre a possibilidade de eficácia terapêutica a partir do “trabalho realizado sobre o afeto não representado”1414 Favret-Saada J. Être affecté. In: Gradhiva: Revue d’Histoire et d’Àrchives de L’ánthropologie. 1990. p. 3-9. Traduzido por: Paula Siqueira e Tania Stolze Lima. “Ser afetado” de Jeanne Favret-Saada. Cadernos de Campo. 2005 [acesso em 2022 jan 5]; 13:155-161. Disponível em: https://www.academia.edu/40823768/_Ser_afetado_de_Jeanne_Favret_Saada_PAULA_SIQUEIRA_T%C3%82NIA_STOLZE_LIMA.
https://www.academia.edu/40823768/_Ser_a...
(155).

Eu estava passando por várias situações de adulto kkkkkkkk. Maior trem doido, aí pensava, vou procurar ‘x’ [primeira autora], mas não dava tempo. (Solana, 26 anos, mensagem privada de WhatsApp).

O que é soropositivo? É quando vc nasce? Com o vírus né? (Plínio, 28 anos, mensagem privada de WhatsApp).

Bom dia, essa noite eu bem sonhei com você. (Antônia, 28 anos, mensagem privada de áudio via WhatsApp).

Oi, [seguida da foto da antiga sala de atendimento com a porta fechada e a luz apagada, seguida da mensagem:] tristeza ver essa sala vazia. (Tiago, 32 anos, mensagem privada de WhatsApp).

Bom dia. Sabe me dizer se no hospital tem tratamento da PrEP? Tive relação hoje com camisinha, mas a camisinha rasgou e não vimos. (João, 22 anos, mensagem privada de WhatsApp).

Tá aí um sorriso que sinto falta. (Verônica, 35 anos, mensagem privada reagindo a mudança de foto de WhatsApp da primeira autora).

Boa tarde, consegui seu número com o João. Precisava conversar com você. (Camila, 28 anos, em mensagem privada de WhatsApp).

Eu sei que vc não faz mais parte do hospital, porém preciso de uma psicóloga com urgência pra mim e para a minha filha. (Lúcia, 29 anos, em mensagem privada de WhatsApp).

Acionamentos como esses fazem refletir até que ponto retornar ao hospital como campo, não mais no lugar de cuidados, mas para desenvolvimento de pesquisa, ou assumir um lugar de pesquisadora que ‘interroga’, pode retroalimentar uma relação que nesse momento se restringiu a fazer parte do grupo de WhatsApp. Esse campo, ao mesmo tempo de proximidade e distância física, demarca ainda as memórias da presença para eles. Uma duração e, também, um controle do lugar que outrora era ocupado como psicóloga/pesquisadora, e agora é a memória da primeira autora de antes.

Vale perguntar sobre qual lugar que a primeira autora de hoje ocuparia nessa relação desigual entre pesquisador e sujeitos de pesquisa, nesse reencontro com os jovens que vivem com HIV/Aids, sustentada pela perspectiva da responsabilidade? Para quem faz sentido o retorno a esse campo?

Constituir um campo de pesquisa em um local em que inúmeros e vastos encontros foram tecidos ao longo de 20 anos, no qual a presença de outrora era da identidade da profissional de saúde e pesquisadora, parece, neste momento, inadequado. Seguindo com Diniz1919 Diniz D. Como falar de temas sensíveis. Banquinha 29 de agosto 2021. Instagram., refletindo sobre como fazer pesquisa com temas sensíveis, faz-se necessário pensar a nossa responsabilidade diante do campo e das pessoas.

Essas mensagens recebidas em espaço de sociabilidade digital acenderam o sinal de alerta para a validade e a relevância de um possível retorno físico nos dias de hoje para outra pesquisa. Considerando que o acionamento de memórias que são dolorosas reativa em pesquisa uma autoridade, uma assimetria de poder pode caracterizar uma relação predatória.

Voltar a acionar esses jovens, com quem ainda perdura uma relação de proximidade, pode reforçar essa assimetria de poderes na posição privilegiada em capital social e cultural; e eles, em gratidão a esse provisório retorno, talvez por afeto e generosidade, aceitassem essa posição abnegada de informantes, na qual o afeto pode não estar representado.

Nessa tecelagem artesanal, uma narrativa que reativa as memórias da experiência - de outrora e atuais - se torna uma narrativa em segunda ordem pela reinterpretação narrativa.

Com Diniz1919 Diniz D. Como falar de temas sensíveis. Banquinha 29 de agosto 2021. Instagram., assumimos que, diante das experiências, a força de testemunho resgata a dignidade de transformar as memórias em narrativas de segunda ordem situadas cultural, social e historicamente. Evocando Larrosa33 Larrosa J. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Rev Bras Educ. 2002 [acesso em 2021 set 5]; 19:20-28. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbedu/a/Ycc5QDzZKcYVspCNspZVDxC/?format=pdf&lang=pt.
https://www.scielo.br/j/rbedu/a/Ycc5QDzZ...
(26–28), “neste saber de experiência que se dá na relação entre o conhecimento e a vida humana [é produzida] diferença, heterogeneidade e pluralidade”.

Retornando ao questionamento sobre a verdade dos testemunhos nas narrativas em segunda ordem, como Diniz1919 Diniz D. Como falar de temas sensíveis. Banquinha 29 de agosto 2021. Instagram. salienta - e como Velho2525 Velho G. Observando o familiar. In: Nunes E, organizador. A aventura sociológica. Rio de Janeiro: Zahar; 1978. desconstrói a ideia de pesquisador imparcial e neutro -, não cabe falarmos sobre a neutralidade, pois não há narrativa isenta de afetos. O compromisso é com a confiabilidade das provocações suscitadas; para tanto, a orientação é o retorno aos escritos, notas, diários e memórias da primeira autora em um exercício de reflexividade. Para Larrosa33 Larrosa J. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Rev Bras Educ. 2002 [acesso em 2021 set 5]; 19:20-28. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbedu/a/Ycc5QDzZKcYVspCNspZVDxC/?format=pdf&lang=pt.
https://www.scielo.br/j/rbedu/a/Ycc5QDzZ...
, o que importa são os “sentidos e os sem-sentidos” no saber da experiência, e não um ideal de verdade.

Como nos inspira Diniz1919 Diniz D. Como falar de temas sensíveis. Banquinha 29 de agosto 2021. Instagram., “me transformar em narradora é me transformar em uma testemunha qualificada”. E no caso do presente ensaio, assumir-se testemunha qualificada significa conectar autoetnografia a sua expressão narrativa.

Considerações finais

A escolha pelo método autoetnográfico considera o lugar de pertencimento das pesquisadoras nas experiências no campo do HIV/ Aids, mas que necessariamente precisa ser submetido ao exercício de reflexividade ética não hegemônica, analisar o que é da ordem pessoal e o que é da ordem política. Como toda experiência é situada, o método autoetnográfico deve ser pensado historicamente refletindo a cultura, o contexto social, econômico, político e as relações sociais.

O recurso às memórias e às experiências de outrora - em pesquisas antecedidas de um acervo próprio, autoral, e denso - oportuniza preservar pessoas que, de alguma forma, foram e ainda são muito acionadas em pesquisas.

A autoetnografia crítica permite a produção de narrativas em segunda ordem, sem deixar de assumir seu caráter político, crítico e transformador, ao assumir que o pesquisador, com suas memórias e fontes documentadas, possui um acervo digno de revisão e mobilização.

  • Suporte financeiro: não houve

Referências

  • 1
    Bourdieu P, organizador. Compreender. In: A miséria do mundo. Petrópolis: Vozes, 2012. p. 683-732.
  • 2
    Benjamin W. O narrador. In: Benjamin W. Textos Escolhidos. São Paulo: Abril Cultural; 1983. p. 53-85.
  • 3
    Larrosa J. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Rev Bras Educ. 2002 [acesso em 2021 set 5]; 19:20-28. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbedu/a/Ycc5QDzZKcYVspCNspZVDxC/?format=pdf&lang=pt.
    » https://www.scielo.br/j/rbedu/a/Ycc5QDzZKcYVspCNspZVDxC/?format=pdf&lang=pt.
  • 4
    Paez AS, Moreira MCN. Sobre a performance de sofrimento na web: narrativas de mães de crianças com condições crônicas complexas de saúde em uma revista eletrônica. Physis. 2019 [acesso em 2021 set 5]; 29(1):1-18. Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=400859290004.
    » http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=400859290004.
  • 5
    Boltanski L. A presença das pessoas ausentes. Parágrafo. 2015 [acesso em 2020 maio 8]; 2(3):147-156. Disponível em: https://revistaseletronicas.fiamfaam.br/index.php/recicofi/article/view/338/346.
    » https://revistaseletronicas.fiamfaam.br/index.php/recicofi/article/view/338/346.
  • 6
    Larrosa J. A Operação Ensaio: sobre o ensaiar e o ensaiar-se no pensamento, na escrita e na vida. Educ Realidade. 2004 [acesso em 2021 set 5]; 29(1):27-43 Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/educacaoerealidade/article/view/25417.
    » https://seer.ufrgs.br/index.php/educacaoerealidade/article/view/25417.
  • 7
    Tilley-Lubbs GA. Critical Authoethnography and the Vulnerable Self as Researcher. Multidisciplinary J Educational Research. 2014 [acesso em 2021 out 24]; 4(3):268-285. Disponível em: http://dx.doi.org/10.447/remie.2014.014.
    » http://dx.doi.org/10.447/remie.2014.014.
  • 8
    Rezende CB, Coelho MC. Antropologia das emoções. Rio de Janeiro: FGV; 2010.
  • 9
    Víctora C, Coelho MC. A antropologia das emoções: conceitos e perspectivas teóricas em revisão. Horizontes Antropol. 2019 [acesso em 2021 out 24]; 25(54):7-21. Disponível em: http://journals.openedition.org/horizontes/3170.
    » http://journals.openedition.org/horizontes/3170.
  • 10
    Coelho MC. As emoções e o trabalho intelectual. Horizontes Antropol. 2019 [acesso em 2021 out 24]; 25(54):273-297. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ha/a/Qkr6CcCFtXLjJfSpgQdrnkN/?lang=pt.
    » https://www.scielo.br/j/ha/a/Qkr6CcCFtXLjJfSpgQdrnkN/?lang=pt.
  • 11
    Beatty A. How did it feel for you: emotions, narrative, and the limits of ethnograpy. American Anthropologist. 2010 [acesso em 2021 out 24]; 112(3):430-443. Disponível em: https://anthrosource.onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1111/j.1548-1433.2010.01250.x.
    » https://anthrosource.onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1111/j.1548-1433.2010.01250.x.
  • 12
    Gomes E, Menezes R. Etnografias possíveis: estar ou ser de dentro. Ponto Urbe. 2008 [acesso em 2019 abr 30]; 3:1-23 Disponível em: http://journals.openedition.org/pontourbe/1748.
    » http://journals.openedition.org/pontourbe/1748.
  • 13
    Magnani JGC. De perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana. Rev Bras Ciências Soc. 2022 [acesso em 2019 abr 30]; 17(49):11-29. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0102-69092002000200002.
    » https://doi.org/10.1590/S0102-69092002000200002.
  • 14
    Favret-Saada J. Être affecté. In: Gradhiva: Revue d’Histoire et d’Àrchives de L’ánthropologie. 1990. p. 3-9. Traduzido por: Paula Siqueira e Tania Stolze Lima. “Ser afetado” de Jeanne Favret-Saada. Cadernos de Campo. 2005 [acesso em 2022 jan 5]; 13:155-161. Disponível em: https://www.academia.edu/40823768/_Ser_afetado_de_Jeanne_Favret_Saada_PAULA_SIQUEIRA_T%C3%82NIA_STOLZE_LIMA.
    » https://www.academia.edu/40823768/_Ser_afetado_de_Jeanne_Favret_Saada_PAULA_SIQUEIRA_T%C3%82NIA_STOLZE_LIMA.
  • 15
    Gesser M, Fietz H. Ética do Cuidado e a experiência da deficiência: uma entrevista com Eva Feder Kittay. Rev Estudos Femin. 2021 [acesso em 2021 dez 1]; 29(2):1-12. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/64987/47491.
    » https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/64987/47491.
  • 16
    Ayres JRCM. Sujeito, Subjetividade e práticas de saúde. Ciênc. Saúde Colet. 2011 [acesso em 2018 dez 1]; 6(1):63-72. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1413-81232001000100005.
    » https://doi.org/10.1590/S1413-81232001000100005.
  • 17
    Tanabe RF. Corpos híbridos – a tecnologia incorporada na vida: explorando as relações de cuidado de crianças com condições crônicas complexas em Terapia Intensiva. [tese]. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2020. 258 f.
  • 18
    Moreira MCN. A Dádiva da Saúde: sociabilidade e voluntariedade no associativismo dos Res. [tese]. Rio de Janeiro: Iuperj; 2005. 235 p.
  • 19
    Diniz D. Como falar de temas sensíveis. Banquinha 29 de agosto 2021. Instagram.
  • 20
    Santos SMA. O método da autoetnografia na pesquisa sociológica: atores, perspectivas e desafios. PLURAL. 2017 [acesso em 2021 out 24]; 24(1):214-241. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/plural/article/view/113972.
    » https://www.revistas.usp.br/plural/article/view/113972.
  • 21
    Reed-Danahay DE. Auto/Ethnography: Rewriting the Self and the Social. American Ethnologist. 2000 [acesso em 2021 out 24]; 27(2):551-553. Disponível em: https://anthrosource.onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1525/ae.2000.27.2.551.
    » https://anthrosource.onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1525/ae.2000.27.2.551.
  • 22
    Méndez M. Autoethnography as a research method: Advantages, limitations and criticisms. Theoretical Discussion Paper. 2013 [acesso em 2021 out 24]; 15(2):279-287. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/260778406_Autoethnography_as_a_research_method_Advantages_limitations_and_criticisms.
    » https://www.researchgate.net/publication/260778406_Autoethnography_as_a_research_method_Advantages_limitations_and_criticisms.
  • 23
    Paez AS, Moreira MCN. Dádivas e testemunhos: o compartilhamento de experiências e memórias de mães de crianças com condições complexas de saúde. Cad. Saúde Pública. 2021 acesso em 2021 dez 5]; 37(1):1-11. Disponível: https://www.scielo.br/j/csp/a/hB4SCTVhxfj4TWpzrCt5cCD/?lang=pt.
    » https://www.scielo.br/j/csp/a/hB4SCTVhxfj4TWpzrCt5cCD/?lang=pt.
  • 24
    Cooper R, Lilyea BV. I’m Interested in Autoethnography, but How Do I Do It? The Qualitative Report. 2022 [acesso em 2022 jan 19]; 27(1):197-208. Disponível em: https://nsuworks.nova.edu/tqr/vol27/iss1/14/.
    » https://nsuworks.nova.edu/tqr/vol27/iss1/14/.
  • 25
    Velho G. Observando o familiar. In: Nunes E, organizador. A aventura sociológica. Rio de Janeiro: Zahar; 1978.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    Dez 2022

Histórico

  • Recebido
    25 Abr 2022
  • Aceito
    14 Set 2022
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
E-mail: revista@saudeemdebate.org.br