Aids e prevenção: um olhar retrospectivo sobre projetos sociais com jovens no Rio de Janeiro

AIDS and prevention: a retrospective view at social projects with young people in Rio de Janeiro

Vanessa do Nascimento Fonseca Marcos Nascimento Simone Monteiro Sobre os autores

RESUMO

Desde 2010, vem-se observando um desmonte de políticas na área da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos. Este artigo objetivou recuperar a memória de intervenções sociais voltadas para o enfrentamento do HIV/Aids. Para tanto, analisou dois projetos sociais com jovens, desenvolvidos por organizações governamentais e não governamentais, na década de 2000, na favela da Maré, no Rio de Janeiro. Trata-se de um estudo socioantropológico que envolveu análise documental e entrevistas com as coordenadoras dos projetos, visando identificar princípios norteadores, abordagens metodológicas e lições. Os achados indicam que o trabalho de prevenção ao HIV/Aids considerou as demandas dos(as) jovens e abordou, de forma participativa, concepções sobre direitos, sexualidade, gênero e vulnerabilidade. O estímulo à atuação juvenil na produção de intervenções e as parcerias institucionais resultaram em atividades sobre temas do cotidiano vinculados, direta ou indiretamente, à prevenção ao HIV. Tal enfoque se contrapõe aos modelos de ação preconcebidos, muitas vezes impostos em contextos de vulnerabilidade social. Os projetos não estiveram isentos de tensões nas relações adulto vs jovens. Todavia, os desafios foram narrados a partir de uma perspectiva de aprendizagem, indicando a importância da recuperação da experiência pela memória, que ajuda a identificar lições aprendidas e a orientar ações futuras.

PALAVRAS-CHAVE
HIV; Adolescente; Áreas de pobreza; Participação da comunidade

ABSTRACT

Since 2010, there has been a dismantling of sexual and reproductive health and rights. This article aims to recover the memory of social interventions aimed at fighting HIV/AIDS. To this end, it analyzes two social projects with young people, developed by governmental and non-governmental organizations in the 2000s, in the favela of Maré, in Rio de Janeiro. It is a socio-anthropological study that involved desk review and interviews with the project coordinators, aiming to identify guiding principles, methodological approaches, and lessons. The findings indicate that the HIV/AIDS prevention work considered the demands of young people and addressed, in a participatory way, conceptions on rights, sexuality, gender, and vulnerability. The stimulation of youth activities in the production of interventions and institutional partnerships resulted in activities on everyday topics linked, directly or indirectly, to HIV prevention. This approach is opposed to preconceived models of action, often imposed in contexts of social vulnerability. The projects were not exempt from tensions in adult vs. youth relationships. However, the challenges were narrated from a learning perspective, indicating the importance of retrieving the experience through memory, which helps to identify lessons learned and guide future actions.

KEYWORDS
HIV; Adolescent; Favelas; Community participation

Introdução

Desde 2010, tem-se evidenciado no Brasil o desmonte de políticas na área da saúde e dos Direitos Sexuais e Reprodutivos (DSR), acompanhado da ampliação das desigualdades sociais, agudizadas pelas respostas do governo federal à pandemia da Covid-19 a partir de 202011 Ortega F, Orsini M. Governing COVID-19 without government in Brazil: Ignorance, neoliberal authoritarianism, and the collapse of public health leadership. Glob. Public Health; 2020; 15(9):1257-1277.. Esse cenário contrasta com o desenvolvimento de intervenções governamentais e comunitárias, nacionais e locais, nas últimas décadas, caracterizadas pela disseminação do preservativo, campanhas educativas, criação de espaços de diálogo e aprendizagem e abordagem sociocultural da sexualidade22 Paiva V, Antunes MC, Sanchez MN. O direito à prevenção da Aids em tempos de retrocesso: religiosidade e sexualidade na escola. Interface (Botucatu). 2020; (24):e180625..

Embora nunca se tenha alcançado amplo apoio aos DSR, o Brasil testemunhou avanços relevantes nesse campo, como: a inclusão da sexualidade em políticas públicas de saúde, fruto do enfrentamento do HIV/Aids e das negociações da Organização das Nações Unidas (ONU) relacionadas com a Saúde Sexual e Reprodutiva (SSR) na década de 199033 Corrêa S. Sexualidade e desenvolvimento uma história em imagens. In: Cornwall A, Jolly S, organizadoras. Questões de sexualidade: ensaios transculturais. Rio de Janeiro: Abia; 2008. p. 48-58.; abordagem das concepções de gênero, SSR e prevenção ao HIV/Aids nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN); estudos sobre as ações de educação em sexualidade para jovens, nos anos 2000, que embasaram a produção de materiais educativos44 Paiva V, Peres C, Blessa C. Jovens e Adolescentes em Tempos de Aids: reflexões sobre uma década de trabalho de prevenção. Psicologia USP. 2002; 13(1):55-78..

A despeito das conquistas, os discursos moralizantes por parte do governo federal empossado em 2019, o desmonte de políticas públicas na perspectiva dos direitos humanos e os efeitos da Covid-19 indicam prejuízos no alcance da SSR e dos DSR. O desinvestimento vem acompanhado do aumento do número de infecções por HIV entre homens jovens (de 15 a 24 anos)55 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde. Boletim epidemiológico de HIV e Aids. Brasília, DF: MS; 2021., assim como de casos de violência doméstica por parceiros íntimos66 Reis AP, Góes E, Pilecco F, et al. Desigualdades de gênero e raça na pandemia de Covid-19: implicações para o controle no Brasil. Saúde debate. 2021; 44 (esp3): 324-340., redução de oferta de serviços de SSR e, consequentemente, do acesso ao aborto legal e a métodos de prevenção e contracepção77 Pilecco F, Mccallum C, Almeida MD, et al. Aborto e a pandemia da COVID-19: lições para América Latina. Cad. Saúde Pública. 2021; 37(6):e00322320.

Tendo como foco a epidemia de HIV/Aids, este artigo objetiva colaborar para a recuperação da memória de intervenções sociais voltadas para o enfrentamento dessa problemática a partir da análise de dois projetos para jovens desenvolvidos na década de 2000. Um deles foi coordenado pelo governo municipal, e o outro, por uma Organização Não Governamental (ONG). Ambos foram realizados no Complexo de Favelas da Maré, no município do Rio de Janeiro, e contaram com a parceria de organizações locais. Por meio de entrevistas com a coordenação dos referidos projetos e de revisão da produção acadêmica e documental, analisaram-se os princípios norteadores, as abordagens metodológicas e os aprendizados das duas intervenções. O trabalho integra um estudo mais amplo sobre intervenções para prevenção do HIV/demais Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST) entre jovens, com base na análise da trajetória de mulheres e homens da favela da Maré, egressos de projetos sociais voltados para promoção da SSR, participação comunitária e protagonismo juvenil.

Inicialmente, será apresentado um breve olhar retrospectivo sobre as respostas à epidemia no cenário brasileiro e o contexto das iniciativas voltadas para jovens, visando identificar lições aprendidas, desafios atuais e as contribuições da produção de memórias. Na sequência, serão descritos os procedimentos metodológicos e os resultados do estudo.

Aids e juventude no cenário nacional: avanços e retrocessos

Ao longo dos 40 anos da epidemia de Aids, houve importantes avanços no diagnóstico, na prevenção, no tratamento e nos direitos das pessoas com HIV. Principalmente nas três primeiras décadas, foram desenvolvidas intervenções criativas e afinadas às demandas de grupos sociais que resultaram da atuação de atores sociais diversos: ativistas, artistas, profissionais de saúde e educação, pesquisadores, políticos, gestores, grupos religiosos, organizações da sociedade civil, empresas privadas e Pessoas Vivendo com HIV/Aids (PVHA)88 Seffner F, Parker R. Desperdício da experiência e precarização da vida: momento político contemporâneo da resposta brasileira à aids. Interface. 2016; 20(57):293-304.. A partir da articulação entre esses diferentes setores, a resposta brasileira produziu evidências de que as políticas de promoção da saúde e dos direitos humanos contribuem efetivamente para estratégias de cuidado bem-sucedidas99 Grangeiro A, Castanheira E, Nemes M. The reemergence of the Aids epidemic in Brazil: Challenges and perspectives to tackle the disease. Interface – Comum. Saúde, Educ. 2015; 19(52):5-8..

De igual modo, favoreceu o reconhecimento das limitações das propostas preventivas centradas na divulgação de informações e na responsabilização individual. Por meio da reflexão acerca das condições de vulnerabilidade às IST/Aids, buscou-se demonstrar que a infecção pelo HIV decorre da articulação de fatores individuais (por exemplo, conhecimento, práticas), coletivos/sociais (como apoio da rede social; relações raciais e de gênero; condições de vida; escolaridade) e institucionais (tais como acesso à prevenção e ao cuidado; intervenções culturais e socioeconômicas adequadas). As lições aprendidas e os saberes práticos e técnico-científico produzidos no período do projeto estavam em conformidade com a diretriz do Ministério da Saúde relativa à prevenção combinada, definida pela associação das abordagens biomédica, comportamental e estrutural, aplicada aos níveis individual, relacional, comunitário e social1010 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento Nacional de DST, Aids e Hepatites Virais. Prevenção combinada do HIV: Bases conceituais para profissionais, trabalhadores e gestores de saúde. Brasília, DF: MS; 2017..

Cabe ressaltar, ainda, o peso da tradição brasileira na formulação de políticas de saúde baseadas na promoção da cidadania e na educação popular, influenciada por Paulo Freire44 Paiva V, Peres C, Blessa C. Jovens e Adolescentes em Tempos de Aids: reflexões sobre uma década de trabalho de prevenção. Psicologia USP. 2002; 13(1):55-78.. Presente em projetos educativos envolvendo grupos populares, antes da emergência da Aids, a abordagem freiriana colaborou para a incorporação do saber popular e a promoção de processos educativos mais democráticos, capazes de valorizar os interesses das classes populares e a análise crítica da realidade1111 Freire P. A Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1979.. A conjuntura de disseminação do vírus da Aids nos contextos mais pobres demandou uma ação articulada à problematização das relações de opressão, visando a sua transformação pelos sujeitos afetados, tal como na perspectiva freiriana. Convergente com essa perspectiva, a noção de solidariedade marcou fortemente a resposta à Aids, favorecendo o entendimento de que o enfrentamento do HIV/Aids depende de ações amplas e de longo prazo, destinadas ao enfrentamento das desigualdades e das injustiças sociais1212 Parker R. Na contramão da aids: sexualidade, intervenção, política. Rio de Janeiro: Ed. 34; 2000..

No final dos anos 1990, diante do aumento de casos do HIV entre segmentos mais empobrecidos, incluindo jovens moradores de favelas, as ações de prevenção para esses grupos foram integradas nas agendas de trabalho de instituições tanto ligadas ao HIV/Aids como aos movimentos feministas, de desenvolvimento social/comunitário e de educação para a saúde1313 Fonseca VN. Saúde, Cultura e Comunidade: Um Estudo Etnográfico do Trabalho de Agentes Locais na Prevenção da AIDS. [dissertação]. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2004. p. 185.. Isso cooperou para que as ações de SSR fossem atravessadas por reflexões críticas às desigualdades associadas a gênero, orientação sexual, raça/ etnia e/ou classe.

A conexão entre Aids e pobreza – articulada ao preconceito contra a diversidade sexual, às iniquidades de gênero, aos problemas do comércio ilegal de drogas e às situações de violência – trouxe desafios contínuos para a prevenção e o cuidado do HIV/Aids nas favelas1414 Edmundo K, Guimarães W, Vasconcellos VS, et al. Network of communities in the fight against Aids: local actions to address health inequities and promote health in Rio de Janeiro, Brazil. IUHPE – Prom. Educ. 2005; (supl3):15-9.. Nessa direção, era necessário realizar ações a partir do conhecimento da comunidade, considerando as demandas da população, o apoio de organizações locais e o trabalho feito por pares. O processo de identificação, formado por grupos que partilham da mesma situação, favoreceu a formação de espaços de resistência e enfrentamento das situações de opressão e discriminação1515 Silva JM, Silva CRC. HIV/Aids e Violência: da opressão que cala à participação que acolhe e potencializa. Saúde Soc. São Paulo. 2011; 20(3):635-646..

Paralelamente, o crescimento de casos de Aids entre jovens e o fomento de iniciativas voltadas à educação em sexualidade, por meio de recursos do Banco Mundial1616 Rios F, Pimenta C, Brito I, et al. Rumo à adultez: oportunidades e barreiras para a saúde sexual dos jovens brasileiros. Cad. Cedes. 2002; 22(57):45-61., aumentaram a atenção para esse público. As plataformas de ação das Conferências Internacional sobre População e Desenvolvimento (Cairo, 1994) e Mundial sobre a Mulher (Beijing, 1995) igualmente recomendavam a inclusão de adolescentes e de jovens nos esforços de promoção dos DSR, incluindo moças e rapazes. No Brasil, a ‘onda jovem’, fenômeno demográfico que apontava uma crescente população jovem no País1717 UNFPA. Direitos da população jovem: um marco para o desenvolvimento. Brasília, DF: UNFPA; 2010., estimulou iniciativas governamentais, como a criação da Secretaria Nacional da Juventude, em 2004, e do Conselho Nacional da Juventude, em 2005. Ao mesmo tempo, o movimento social organizado passou a enfocar ações de educação em saúde no âmbito dos DSR1818 Lyra J, Medrado B, Oliveira AR, et al. Juventude, mobilização social e saúde: interlocuções com políticas públicas. Recife: Instituto PAPAI; MAB; Canto Jovem; 2010..

Essas lições afirmaram ações crítico-emancipatórias, solidárias e com base nos direitos humanos, gerando otimismo no Brasil. Ademais, renderam ao País um lugar de destaque no cenário internacional, garantindo financiamentos que permitiram aprimorar as estratégias consideradas criativas, nascidas localmente, de organizações sociais.

Após um período de avanços, desde os primeiros anos de 2010, a população brasileira vem testemunhando o desmonte de iniciativas fundamentais para a prevenção do HIV, como mencionado. Além da ausência da perspectiva de direitos humanos e da crítica às desigualdades sociais, notam-se a crescente resistência ao debate sobre gênero e sexualidade nas escolas e a suspensão de ações de prevenção às IST/Aids para jovens, LGBTQIA+ e prostitutas. Um exemplo foi a censura a campanhas e a materiais educativos em 2012 e 2013, acompanhados por demissões de equipe. Há fortes indícios da relação dessas interdições com um movimento conservador, que tem sustentado a anulação de práticas de saúde orientadas pelos direitos humanos1919 Malta M, Beyrer C. The HIV epidemic and human rights violations in Brazil. J. the Inter AIDS Society. 2013; 16(1):18817..

Outro aspecto que tem colaborado para o esvaziamento do componente crítico-emancipatório das ações de prevenção à Aids refere-se à ênfase nas novas tecnologias biomédicas de prevenção. Embora representem um grande avanço no controle e no cuidado do HIV/Aids, tal enfoque não tem contemplado intervenções estruturais e comportamentais exitosas, voltadas para redução das condições de vulnerabilidade2020 Monteiro S, Brigeiro M, Villela W, et al. Desafios do tratamento como prevenção do HIV no Brasil: uma análise a partir da literatura sobre testagem. Ciênc. Saúde Colet. 2019; 24(5):1793-1807.,2121 Gavigan K, Ramirez A, Milnor J, et al. Pedagogia da Prevenção: Reinventando a prevenção do HIV no século XXI. Rio de Janeiro: ABIA; 2016.; sendo considerado como um desperdício da experiência88 Seffner F, Parker R. Desperdício da experiência e precarização da vida: momento político contemporâneo da resposta brasileira à aids. Interface. 2016; 20(57):293-304.. Compartilha-se do pressuposto que a memória, embora ainda pouco explorada em pesquisas sobre o ativismo e o HIV/Aids, no Brasil e no exterior2222 Valle CG. Memórias, histórias e linguagens da dor e da luta no ativismo brasileiro de HIV/Aids. Sexual. Salud y Soc. – Rev. Latinoamericana. 2018; (30):153-182., serve de artifício político no enfrentamento do desmonte das conquistas nessa área. Por meio da memória, pode-se evocar as condições de possibilidade dos avanços e afirmar as lições aprendidas com seus processos. Lançar um olhar retrospectivo sobre ações de prevenção, desenvolvidas no âmbito de dois projetos sociais para jovens há duas décadas, não tem a intenção de representar prova incontestável2323 Scott JW. A invisibilidade da experiência. Proj História. 1998; (16):297-325. dos acontecimentos, mas de produzir elementos que interrompam as perspectivas únicas. Nesse caso, aquelas que esvaziam a complexidade envolvida nas ações de prevenção ao HIV/Aids. Posto isso, não se trata de avaliar as intervenções ou apresentá-las como exemplos a serem copiados. A partir do exame de suas lições, oportunidades de desenvolvimento de ações e princípios ético-políticos e metodológicos, pode-se olhar para a multiplicidade de eventos que atravessaram as intervenções e que permitiram escapar de práticas individualizantes e homogeneizantes de prevenção que, desde o início da epidemia de Aids, mostraram-se ineficazes.

Metodologia

Trata-se de um estudo socioantropológico que envolveu análise documental e entrevistas, aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto Oswaldo Cruz da Fundação Oswaldo Cruz –F iocruz (CAAE: 51286021.0.0000.5248). Nos estudos de rememoração, são priorizadas a pesquisa documental e a etnografia da memória de marcos, eventos e políticas, além da entrevista com lideranças na história do ativismo para a Aids2222 Valle CG. Memórias, histórias e linguagens da dor e da luta no ativismo brasileiro de HIV/Aids. Sexual. Salud y Soc. – Rev. Latinoamericana. 2018; (30):153-182.. Neste artigo, foram utilizados: documentos (artigos, diários, relatórios) e entrevistas, realizadas em 2021, com a equipe de coordenação dos dois projetos sociais desenvolvidos na favela da Maré, doravante denominados projetos A e B.

As coordenadoras entrevistadas são mulheres entre 45 e 65 anos, com formação em medicina, psicologia ou saúde pública. Além das entrevistas com coordenadoras de ambos os projetos, cabe mencionar que uma das autoras deste texto integrou a equipe de coordenação do projeto B, atuando no planejamento, no desenvolvimento de atividades e na produção de relatórios, mas não participou como entrevistada. Desse modo, é inegável que a narrativa das entrevistadas seja recortada pelas memórias da própria autora, oferecendo-lhe novos sentidos à elaboração do passado. Como já referido, tais fontes integram uma pesquisa mais ampla sobre fatores individuais, sociais e institucionais que influenciaram a trajetória de jovens que participaram desses projetos na Maré. Os depoimentos de dez egressos dos projetos, na faixa etária de 30 a 40 anos na ocasião das entrevistas, serão analisadas em outro artigo.

Cabe informar que o Complexo de Favelas da Maré abriga pouco mais 135.989 moradores segundo o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010. É o nono bairro mais populoso do município do Rio, com uma média de 2,91 moradores por domicílio. Embora diversa, a Maré é marcada por desigualdades sociais, pela atuação do tráfico de drogas e por políticas de segurança pública que impõem situações de violência e insegurança aos moradores. Todavia, o território apresenta equipamentos sociais e organizações comunitárias que ressaltam a cultura local e lutam pela formação intelectual dos moradores, o que resultou na ampliação do número de pessoas com graduação e pós-graduação. Na primeira década de 2000, havia vários projetos de promoção da SSR e prevenção do HIV, como os analisados aqui, que engajavam jovens na luta por melhores condições de saúde. A partir de recente etnografia na Maré, foi possível observar a escassez de ações sobre saúde sexual (governamentais e não governamentais), desconhecimento dos/as jovens sobre Aids/demais IST e uso inconsistente de preservativos. Com base na participação em outros estudos com jovens de baixa renda de cinco cidades brasileiras, ainda em curso, pode-se inferir que essa situação ocorre em outras regiões do País.

As entrevistas com as quatro coordenadoras foram transcritas, categorizadas no software NVivo e sistematizadas a partir das seguintes categorias temáticas: concepção dos projetos; financiamento; seleção e perfil dos/as jovens; perfil profissional e organização da equipe; intervenções e princípios ético-políticos; atribuições e concepções sobre a participação dos/as jovens; parcerias institucionais; processos avaliativos e desdobramentos dos projetos. No intuito de fazer um contraponto ao desmonte observado nas respostas à Aids, serão priorizadas informações sobre as oportunidades oferecidas pelo contexto político, os modos de fazer e as perspectivas ético-políticas que compuseram os dois projetos. Para manter o sigilo, nos trechos citados, serão usadas as legendas Coord1, Coord2, Coord3, para as três entrevistadas do projeto A; e a legenda Cood4, para a entrevistada do projeto B. Os documentos sobre os projetos não foram citados para evitar sua identificação. As informações geradas por essas fontes encontram-se, sobretudo, na caracterização dos projetos A e B, resumidas no quadro 1.

Quadro 1
Características dos projetos A e B

Embora não sejam oriundos de ONG-Aids, os dois projetos foram selecionados dado que a prevenção do HIV era relevante em seus programas educativos, além de serem orientados por uma abordagem que valorizava a participação juvenil e o contexto sociocultural e econômico na compreensão das práticas de cuidado da SSR. Outrossim, contrapunham-se às perspectivas biomédica e individualizante, centradas na transmissão de informações e na responsabilidade individual.

Resultados e discussão

Na análise dos documentos e das entrevistas, buscou-se identificar questões consideradas relevantes para o desenvolvimento de ações emancipatórias na promoção de SSR e prevenção do HIV/Aids, quais sejam: visões sobre a oferta de subsídios para projetos progressistas com jovens no Brasil; inclusão da abordagem sexualidade, gênero e vulnerabilidade social; valorização das ações entre pares; dialogicidade nas relações entre os jovens e os profissionais dos projetos; participação e engajamento dos jovens; e parcerias com serviços de saúde e organizações comunitárias locais.

Subsídios para projetos progressistas

Em relação ao financiamento, todas as entrevistadas destacaram uma disponibilidade de investimentos no início dos anos 2000 para a implementação de projetos de formação de jovens com a finalidade de promover SSR e prevenção de HIV. Segundo a Coord4, o trabalho contou com um cenário favorável para debates relacionados com a sexualidade juvenil no Brasil, beneficiado ainda pela atenção e pelo financiamento no enfrentamento da epidemia de Aids. A Coord4 complementa, afirmando que, diferentemente do contexto estadunidense, cuja perspectiva se baseava na moralidade e na abstinência, a abordagem brasileira era considerada humanista, fruto da mobilização da sociedade civil. Ou seja, conforme assinalado na introdução, o Brasil se destacava no cenário internacional pelos projetos de prevenção ao HIV/Aids, caracterizados por ações progressistas e orientadas pelos direitos humanos44 Paiva V, Peres C, Blessa C. Jovens e Adolescentes em Tempos de Aids: reflexões sobre uma década de trabalho de prevenção. Psicologia USP. 2002; 13(1):55-78..

A solidariedade, marca da resposta brasileira, esteve presente na narrativa das coordenadoras a partir da análise dos desafios e diferenças entre a realidade delas e dos/as jovens integrantes dos projetos. Para a Coord4, a solidariedade também estava relacionada com o acolhimento sem julgamento de diversas orientações e práticas sexuais. A partir de seus relatos, identificou-se a concepção de solidariedade engajada2424 Freire P. Pedagogia da Solidariedade. Rio de Janeiro; São Paulo: Paz e Terra; 2021., baseada nos direitos humanos e na crítica às desigualdades sociais e aos lugares de poder – o que permitia produzir ajustes necessários nas práticas reducionistas dos projetos sociais atravessados pelo contexto neoliberal2525 Aguiar K. Práticas de formação e a produção de políticas de existência. Psicol. Soc. 2012; 24(esp): 60-66..

Gênero e sexualidade

O debate sobre gênero, na pauta dos direitos humanos, foi incorporado pelos dois projetos e, possivelmente, influenciado pela extensa literatura da época sobre as consequências das iniquidades entre homens e mulheres nas interações afetivo-sexuais e nas condições de vulnerabilidade ao HIV e demais IST2626 Pulerwitz J, Barker G. Gender Norms Among Young Men in Brazil: Development and Psychometric Evaluation of the GEM Scale. Men and Masculinities. 2008; 10(3):322-338.. No projeto B, cujo objetivo principal era o empoderamento de mulheres jovens, buscava-se debater o conceito de gênero a partir do que era “aprendido, desfeito, refeito” a respeito dos comportamentos masculinos e femininos, conforme afirma Coord4. No projeto A, voltado para a saúde de forma ampla, a crítica às desigualdades de gênero emergiam de forma transversal, no planejamento das atividades, em que abusos percebidos contra mulheres, conflitos nos grupos de jovens e desafios à negociação do preservativo com o parceiro tornavam o tema inevitável. Desse modo, a abordagem da prevenção não escapava à análise das condições sociais que a atravessam.

Embora ambos os trabalhos incluíssem os homens, o que era inovador até então, na abordagem de gênero dos projetos, as entrevistadas reconheceram o predomínio de uma perspectiva binária. Tal concepção não incorporava discussões, posteriores à época dos projetos, questionadoras da noção de gênero como uma ordem compulsória e constante, que exige coerência entre os genitais e os desejos, ao mesmo tempo que produz uma hierarquia entre o masculino e o feminino2727 Butler J. Problemas de Gênero: Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2008..

Ainda nessa direção, as ações propostas abordavam predominantemente práticas heterossexuais, como relatado pelas coordenadoras dos projetos. Isso não significava a ausência de atenção aos episódios de homofobia entre os participantes. Destaca-se que as situações de discriminação foram abordadas com acolhimento por parte dos/as profissionais do projeto, bem como pela aproximação entre pares, estímulo ao engajamento em movimentos relacionados com a diversidade sexual e de gênero, e atividades que lhes permitissem expressar criticamente a violência sofrida, como o teatro. Era, portanto, no cotidiano das ações, a partir dos conflitos e discriminações contra jovens LGBT (como denominado na primeira metade dos anos 2000), que a abordagem de gênero se ampliava. Como demonstrado em outras pesquisas, a formação de um grupo que tinha em comum situações de discriminação funcionou como espaço de resistência à opressão e ao preconceito1515 Silva JM, Silva CRC. HIV/Aids e Violência: da opressão que cala à participação que acolhe e potencializa. Saúde Soc. São Paulo. 2011; 20(3):635-646.. O estímulo ao engajamento dos/as jovens LGBT no enfrentamento da intolerância sofrida igualmente resultou em organizações e lideranças desse movimento social.

Dialogicidade, participação e engajamento juvenil

Nos dois projetos, o enfrentamento dos obstáculos impostos pelo contexto de desigualdades sociais, marcado por pobreza, racismo, machismo e homofobia, caracterizava-se por uma perspectiva ético-política centrada no estímulo à participação ativa dos/as jovens na produção de intervenções para seus pares, comum a diversos projetos sociais em favelas2828 Boghossian CO. Participação e saúde na trajetória social de jovens da Maré. [tese]. Rio de Janeiro: Instituto Fernandes Figueira; 2009. p. 453.. “Era uma época de muita efervescência desses projetos com jovens” (Coord3); “a participação dos/as jovens era um atrativo para angariar recursos” (Coord4). Esse enfoque se contrapõe às abordagens centradas na divulgação de informações, currículos de atividades ou técnicas de intervenção, definidas a priori.

A participação aqui é concebida como perspectiva ético-política por compreender uma crítica aos lugares tradicionalmente atribuídos aos/às jovens, bem como seu engajamento na transformação das situações que lhes oprimem. Portanto, participação não se confunde com a presença de jovens em comitês ou conselhos nem com a ausência de adultos como educadores2828 Boghossian CO. Participação e saúde na trajetória social de jovens da Maré. [tese]. Rio de Janeiro: Instituto Fernandes Figueira; 2009. p. 453.. Outro mito2929 O ́Donoghue JL, Kirshner B, McLaughlin M. Moving youth participation forward. New directions for youth development: theory, practiceand research. Wiley Periodicals, INC. 2003; (96):15-26. a respeito do tema da participação juvenil é de que o conceito seria bem compreendido por adultos e jovens, sem necessidade de reflexão sobre o assunto. A prática dos projetos demonstrou ambivalências na partilha das tarefas entre os/as profissionais e os/as jovens, ou por cobranças excessivas na realização das ações, ou pela tutela dos jovens. Assim, segundo a Coord1, o constante debate sobre o papel de cada um/a (jovens e profissionais de apoio) no projeto foi fundamental para a revisão das relações.

Nos dois projetos, os/as jovens tinham um papel ativo na definição das atividades. Para garantir sua colaboração, havia uma divisão entre dinamizadores, coordenadores e promotores. Por meio desses papéis, era possível engajá-los/as mais ativamente em diferentes etapas do trabalho3030 Silva Sobrinho AL. “Jovens de Projetos” nas ONGs: olhares e vivências entre o engajamento político e o trabalho no “social”. [dissertação]. Niterói: Universidade Federal Fluminense; 2012. p. 114.. Destaca-se que a valorização da participação juvenil não pode ser mera estratégia para agregar pessoas, tampouco apenas retórica. A partir do discurso das coordenadoras, compreende-se que isso fazia parte de um compromisso ético-político de atenção à multiplicidade de fatores que compõem a vida. As ações são implementadas com o reconhecimento da história de luta local e das possibilidades criativas dos/ as jovens de transformarem sua realidade, componentes importantes no processo de promoção da saúde, incluindo a prevenção ao HIV/Aids, em que a infecção é consequência de fatores relacionais, programáticos e institucionais2020 Monteiro S, Brigeiro M, Villela W, et al. Desafios do tratamento como prevenção do HIV no Brasil: uma análise a partir da literatura sobre testagem. Ciênc. Saúde Colet. 2019; 24(5):1793-1807.. Assim,

foi um projeto de protagonismo [...] mas não só na saúde, na vida. esse processo vai interferir na saúde sexual coletiva em todas as dimensões da vida [...] Ele vai se tornar sujeito da própria vida. Vai ter uma participação comunitária no seu espaço que gere mudanças no seu território, não só na sua vida, mas como na vida dos seus pares. (Coord3).

O envolvimento dos/as jovens na implementação das ações resultou em muitas atividades inventivas e de interesse de outros/as jovens, como atividades corporais, preparação da sala de espera com jogos, oficinas de customização de roupas, participação em feiras e peças de teatro, com temas que extrapolavam a mera informação sobre métodos de prevenção ao HIV, tratando de problemas do cotidiano dos/ as jovens segundo a Coord1.

Parcerias com serviços de saúde e organizações sociais locais

Apesar do contexto favorável ao financiamento de projetos participativos com jovens, a invisibilidade para questões de saúde desse segmento no âmbito programático trazia entraves ao seu acolhimento no contexto dos serviços de saúde. Segundo a Coord2, a prioridade às enfermidades da infância e da velhice, além de moralidades que desconsideram a capacidade dos/as jovens de se relacionar sexualmente e engravidar, costuma mantê-los/as afastados/as dos cuidados em saúde. Havia resistência de clínicos e pediatras no atendimento do grupo (C2) e dificuldade de compreensão dos profissionais de saúde acerca da participação dos/as jovens nos serviços. Ou esses/as eram tutelados, ou se acreditava que os/as jovens deveriam ter as mesmas tarefas e responsabilidades do que os/as profissionais nas ações de promoção da saúde. Segundo Coord3, essas crenças demandavam intenso trabalho de construção de relações de confiança entre profissionais e jovens.

A participação juvenil efetiva requeria, portanto, um trabalho das coordenações dos projetos no sentido de sensibilizar os profissionais sobre as necessidades dos/as jovens daquele contexto, associadas à SSR e o potencial desses jovens enquanto coparticipantes das ações de promoção da saúde. Nesse sentido, o trabalho partilhado entre profissionais e jovens tensionava as hierarquias entre os que ocupavam o lugar de especialistas e os de aprendizes.Essas relações puderam ser problematizadas no acompanhamento dos projetos, sobretudo nas reuniões de equipe, que, no caso do projeto A, agregava profissionais diversos: dos serviços de saúde, das organizações parceiras e contratados para atividades específicas (teatro, educação física, assistência social).

Na problematização sobre a importância do diálogo e da escuta nas relações entre os profissionais e a população jovem local, segundo a Coord4, era preciso considerar que os/as jovens encontravam pouco espaço para elaborar suas questões sobre sexualidade e relacionamentos. Na escola, deparavam-se com empecilhos na abordagem de temas relativos à SSR. Na família, poucos pais paravam “pra conversar com os filhos sobre aborto, sobre homofobia, prevenção” (Coord4). A informação obtida sobre o assunto, acabava por ser não qualificada, sendo fundamental criar um espaço que “não existe organicamente na sociedade” (Coord4).

E a gente entendia que, quando você trabalha com promoção da saúde e prevenção, você tem que principalmente lidar com essas angústias do/a adolescente, usa camisinha, não usa. (Coord2).

Nesse sentido, a ausência de espaços abertos e confiáveis para a elaboração de questões sobre sexualidade convertia os projetos sociais em alternativas importantes para os/as jovens desde que envolvesse intenso trabalho de análise das relações em cena.

As relações estabelecidas entre os/as jovens e os/as profissionais envolvidos/as nos projetos foram instrumento de formação para ambos/as. De um lado, as coordenadoras relataram aprender com os desafios impostos pelas relações com o diferente; de outro, os/as jovens acessavam espaços até então não frequentados, como museus, bibliotecas e restaurantes, no Centro e em bairros de classe média, além de viagens internacionais para apresentação de suas ações na comunidade; ampliando seu capital social. Além da circulação por espaços sociais da cidade, as ações do projeto proporcionavam um diálogo sobre temas da vida cotidiana, como sexualidade e relacionamentos, e o envolvimento dos/as jovens nas diferentes etapas do trabalho, tais como planejamento, avaliação das ações e participação em eventos.

Desse modo, tanto os/as profissionais acompanhavam parte do cotidiano dos/as jovens na favela quanto os/as jovens frequentavam a sede central da organização, acessando locais e recursos que antes lhes pareciam distantes. Como analisado em pesquisas sobre projetos sociais para jovens de camadas populares, foi possível notar a contribuição das ações para a ampliação das perspectivas de vida e do capital simbólico dessa população, com impactos positivos no campo da SSR3131 Monteiro S, Cecchetto F. Trayectorias Juveniles e Intervenciones Sociales. Cad. Saúde Pública. 2006; 22(1):193-200.. Esse fato, registrado por todas as coordenadoras a partir de contatos posteriores com o público dos projetos, será aprofundado em outro artigo, de mesma autoria, com a análise das entrevistas com egressos/as.

Nas ações voltadas para a SSR, é importante contemplar as dimensões no âmbito individual, comunitário e social. O trabalho dentro do território, em parceria com organizações comprometidas com as condições sociais da comunidade e com a formação dos/as jovens, fazia com que as intervenções fossem além das informações sobre métodos anticoncepcionais e de prevenção ao HIV/demais IST. A ação de prevenção alcançava de forma mais ampla as condições de vulnerabilidade do grupo ao tocar nas diferentes formas de injustiça vivenciadas pelos/as jovens em seu cotidiano. Tratava-se de um engajamento social e político, comprometido com a afirmação da vida em sua diversidade, gerado pela problematização da realidade e pelo reconhecimento da importância do público de interesse na produção de estratégias criativas para a transformação de seu meio.

[...] essa reflexão sobre a identidade da Maré [produziu efeitos] não só na autoestima dos jovens, mas da forma como eles se posicionavam. Por exemplo, a primeira peça que eles fizeram, não tem a ver com sexualidade, [...] mas com uma forma de perceber a sua comunidade, o seu papel aqui [a peça], só pelo título, não fazia um juízo de valor, então eles reconheciam as diferentes populações da Maré. [...] essa postura conseguiu com que eles tivessem trânsito. [...] Então não era só um conteúdo técnico. Tinha todo um compromisso realmente com a formação, com a postura desses jovens. (Coord1).

O trabalho da ONG local “de valorização da identidade do morador ficou muito forte pra eles também, de poderem se apresentar como morador” (Coord1). Ser estimulado/a a afirmar com orgulho sua origem não era um trabalho pontual; estava ligado ao acesso à história de lutas do local, bem como à oferta de ferramentas diversas de expressão, acesso e problematização dos espaços mais reconhecidos socialmente. Tais ações contribuíam para o enfrentamento da discriminação sofrida por jovens oriundos de favelas e, consequentemente, para o cuidado com a saúde, tanto pelo trânsito facilitado entre os serviços de saúde quanto pelo reconhecimento de seus direitos ou pela motivação em estar bem.

A possibilidade de vínculos com organizações de diferentes naturezas dentro da comunidade, como ligadas às artes, foi fundamental para estimular o interesse e engajar jovens de diversos perfis. Ademais, a questão da Aids poderia ser abordada por ângulos diversos.

eles tinham acesso a uma formação que não era a gente do projeto que oferecia. Foi via parceria. Então, eles tinham aula de teatro, [...] tinha um grupo que trabalhava com maculelê. Então esses diferentes conteúdos também ajudavam a enriquecer os conteúdos da Saúde. (Coord1).

A partir das redes locais, a saúde pôde ser abordada por meio de uma perspectiva de direitos, para além do acesso aos serviços. As ferramentas de expressão e problematização da realidade, facilitadas pela articulação com organizações locais, mostraram-se instrumento potente para a formação do pensamento crítico e do entusiasmo para tratar temas do dia a dia. À medida que os/as jovens eram engajados/as na criação de estratégias para a saúde, eram questionados/as sobre aspectos relativos ao seu cotidiano e condição social, ampliando o debate sobre as condições de vulnerabilidade ao HIV. A possibilidade de elaboração e expressão de situações vividas, por meio de vários canais, abriu, assim, oportunidade para a experiência, compreendida aqui como o que acontece com as pessoas, o que as toca3232 Larrosa J. Tremores: escritos sobre experiência. Belo Horizonte: Autêntica Editora; 2017..

Para que a experiência tenha lugar, é necessário parar para pensar, olhar e escutar, ou fazê-lo mais devagar3232 Larrosa J. Tremores: escritos sobre experiência. Belo Horizonte: Autêntica Editora; 2017.. Portanto, contrariando a necessidade de respostas rápidas e reducionistas das ações em saúde, o tempo foi o principal fator na aprendizagem para a superação dos limites presentes nas ações, que incluíam abordagens restritivas de gênero, saúde e prevenção de HIV:

O projeto começou muito nessa vertente da sexualidade [...] com uma cara assim de trabalho com métodos [de prevenção], com DST, com coisas muito caretinhas e restritas, e pouco a pouco a gente foi percebendo que isso não era o foco principal [...] é importante na vida do jovem, mas não o retrato do jovem, de tudo que o jovem pensa e faz. Eu acho que essa foi uma metodologia que foi mostrando isso. [...] Que ser escutado, que planejar junto, avaliar junto, opera muito mais mudanças [...] que ter uma vivência integral, artística, de autoconhecimento, de diálogo com os pares, é muito mais potente do que qualquer informação. Informação aparece, vem. (Coord3).

Considerações finais

Este artigo pretendeu ressaltar as condições que facilitaram a realização dos projetos sociais analisados, caracterizadas pelo cenário favorável para debates sobre sexualidade juvenil, bem como dos princípios ético-políticos que possibilitaram escapar das amarras de formatos preconcebidos. Por meio desta análise, buscou-se contrapor ações de um passado recente com a reação conservadora por parte de governantes brasileiros, empossados em 2019, a qual impõe o esvaziamento das estratégias de prevenção ao HIV/Aids de seu componente político-social, sexual e de direitos.

Os achados sugerem que o trabalho de prevenção do HIV/Aids, ao considerar as demandas dos/as jovens da localidade e abordar, de forma participativa, concepções sobre direitos, sexualidade e gênero, contribuiu para a compreensão dos contextos de vulnerabilidade vivenciados pelo grupo. O estímulo das equipes do projeto à atuação dos/as jovens na produção de intervenções para seus pares e na mobilização social resultou em atividades diversificadas (peças teatrais, jogos, feiras, entre outras), sobre temas do cotidiano vinculados, de forma direta ou indireta, à prevenção ao HIV. A realização de alianças com instituições diversas e profissionais de diferentes áreas ofereceu oportunidades para sensibilização de profissionais de saúde quanto ao público jovem e para que os/as jovens se engajassem em assuntos de seus interesses.

Quanto aos desdobramentos dos projetos na vida dos/as jovens envolvidos, a relação de proximidade estabelecida entre os/as profissionais e os/as jovens dos projetos permitiu o acompanhamento de algumas de suas trajetórias. Desse modo, as coordenadoras tiveram conhecimento de que alguns/as integrantes engajaram-se mais ativamente em movimentos sociais diversos, aprofundaram-se no debate sobre as diferentes desigualdades sociais, por meio de carreira acadêmica, e construíram relacionamentos afetivos mais equânimes. Na análise das trajetórias dos/as egressos/as dos projetos sociais, que será aprofundada em outro artigo, identificou-se que o incentivo à participação juvenil, as parcerias com organizações locais e a perspectiva dos direitos humanos e das desigualdades sociais e de gênero contribuíram para que os jovens participantes adotassem práticas preventivas ao HIV/IST e relações de gênero mais igualitárias e não abusivas e planejassem a maternidade/paternidade.

Depreende-se que a solidariedade na resposta à Aids, cuja memória tem sido reivindicada por ativistas e pesquisadores, está relacionada com um projeto ético-político que rege os encontros na intervenção; requer alianças; envolvimento de todas as pessoas na construção da ação; análise dos lugares dos pesquisadores e uma aposta no tempo como “um agente que ‘trabalha’ nas relações”3333 Das V. Fronteiras, violência e o trabalho do tempo: alguns temas wittgensteinianos. Rev. bras. Ci. Soc. 1999; 14(40):31-42.(37). Ambos os projetos reconheceram a importância de compreender as necessidades dos/as jovens e envolvê-los na construção das atividades em parceria com pessoas e instituições locais. Tal enfoque se contrapõe aos modelos de ação preconcebidos, muitas vezes impostos em contextos de vulnerabilidade social.

Os projetos não se isentaram de tensões nas interações entre os/as profissionais e os/as jovens segundo a narrativa das interlocutoras. Todavia, os desafios foram narrados a partir de uma perspectiva de aprendizagem. Aí reside a importância da recuperação da experiência pela memória, que ajuda a analisar as intervenções a partir dos deslocamentos produzidos pelo trabalho do tempo e a orientar ações futuras.

  • Suporte financeiro: Programa INOVA Fiocruz

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    Dez 2022

Histórico

  • Recebido
    30 Mar 2022
  • Aceito
    10 Set 2022
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